Jornalismo

A miséria do jornalismo ou a miséria do mundo?

Avulsa 4 - imagens6

Estava eu, por esses dias, lendo um livro-reportagem sobre a queda da bomba de Hiroshima. O relato feito pelo jornalismo John Hersey, publicado na The New Yorker, em 31 de agosto de 1946, é considerado uma espécie de “Cidadão Kane” do jornalismo. Juízos de valor à parte, o fato é que a reportagem narra a vida de seis personagens antes, durante e depois do bombardeio. Em um pouco mais de 30 mil palavras, o jornalista trata com sobriedade o horror que foi a morte de 100 mil pessoas e os ferimentos de mais 100 mil, ora provocando pesar, identificação, lamento e fé do leitor para com os personagens. Ainda não terminei a leitura, mas o livro já me levou às lágrimas várias vezes pelo simples fato de lembrar que a humanidade, definitivamente, é desumana – com o perdão da tomada de empréstimo do trocadilho musical de Renato Russo.

Estou eu envolta na leitura, tentando saber o desfecho das vidas desses seis japoneses e das centenas de outros personagens que perpassam a narrativa quando me deparo, nas redes sociais, com a publicação, no dia 2 de setembro, da foto do pequeno menino sírio morto em uma praia na Turquia após um naufrágio de um barco com imigrantes  do Oriente Médio. E mais do que as notícias sobre o caso, já me dou conta também da repercussão em torno dele. A ética em torno da publicação da imagem pela mídia foi o argumento mais recorrente, seguido de perto pelo argumento de que não precisamos ver imagens tão tristes como esta, pois elas, supostamente, banalizam a desgraça alheia.

A ética em torno da publicação da imagem pela mídia foi o argumento mais recorrente, seguido de perto pelo argumento de que não precisamos ver imagens tão tristes como esta, pois elas, supostamente, banalizam a desgraça alheia. 

A primeira coisa que me veio à mente foi: se em 1946, Hersey e os editores da The New Yorker pensassem assim, essa grande obra jornalística não teria saído do imaginário do jornalista. As palavras de Hersey têm o mesmo valor dos pixels da imagem fotográfica que rodou o mundo no dois de setembro. Os dois relatos de naturezas linguísticas distintas e contextos sócio-culturais também diferentes, carregam entre si a semelhança de terem incomodado o status quo e dado a ver ao mundo o terror das ações de governos intransigentes. A cúpula norte-americano, à época de Hiroshima, teve que se explicar sobre o uso de uma arma nuclear contra um país que estava à beira da rendição. Enquanto, hoje, os governos europeus se viram forçados a criar políticas de imigração que não prevejam apenas a construção de muros para manter o estrangeiro fora de seus domínios.

A mim, o incômodo maior não foi nem o do teor da imagem, que por mais triste que seja se alia a um grupo imenso de outras imagens produzidas ao longo de nossa história imagética que nos mostram o quão desumanos somos. Meu terror veio do fato de o público se recusar a ver essa imagem. Justo quando o jornalismo – essa instituição à beira da falência, para muitos – cumpre seu papel certinho, contextualizando a imagem, pressionando a opinião pública sobre o fato, parte do público esnoba seu resultado sob a alegação do sensacionalismo ou de um “cansaço do horror”. Quisera eu que o jornalismo só noticiasse beleza, delicadeza, mas enquanto existir o horror, temos a obrigação de mostrá-lo, claro que com a sensibilidade e respeito para com os envolvidos que a boa ética profissional ensina.

O problema, ao meu ver, não é a imagem, somos nós, ora acomodados nos nossos castelos de areia, ora banalizando a dor e sofrimento alheio. Essa repercussão é ótima para fazer com que coloquemos a mão na consciência sobre nossos atos e não falo de governos, falo de cada indivíduo, porque, muitas vezes, no dia a dia, na piada, na brincadeira, nas relações de trabalho reproduzimos violências discursivas e simbólicas que podem um dia levar a violências como esta que tanto nos incomoda quando registrada e devidamente problematizada.

Há um resquício de esperança perceber que essa fotografia nos aterrorizou, pois quando não nos admirarmos mais com a violência ou não nos apiedarmos pelos que sofrem, aí já teremos perdido a humanidade de vez.

Esse mascaramento das imagens que perturbam a ordem não é apenas uma rejeição midiática, mas uma ação que, de certa forma, já se sacralizou no cotidiano com a invisibilidade de sujeitos e situações que nos tiram de nossa zona de conforto. Mendigos, mulheres vítimas de violência doméstica e sexual e portadores de deficiências, para nós, “cidadãos”, no alto de nossas obrigações sociais, são sujeitos invisíveis pelo simples fato de não sabermos lidar com eles, de não caberem no nosso mundo perfeito e ideal, que não passa de uma grande utopia.

Já estamos habituados a dar de ombros para essas imagens, mas o menino sírio parece que descobriu um pouco esse véu da indiferença. Entendo que, no contexto de hoje, bem diferente daquele em que Hiroshima foi publicado, o valor de exibição das imagens reproduzidas tecnicamente – como bem observou Walter Benjamin – esvaziou de sentido e significado muitas fotografias, filmes e programas de TV. A sociedade do espetáculo parece ter nos anestesiado para o consumo de muitas cenas, porém me dá um resquício de esperança perceber que essa fotografia nos aterrorizou, pois quando não nos admirarmos mais com a violência ou não nos apiedarmos pelos que sofrem, aí já teremos perdido a humanidade de vez.

A iconicidade fotográfica ou a simbologia das palavras no texto verbal estão aí, seja no caso do menino sírio ou de Hiroshima, para nos fazer sentir vergonha, impotência, dor, lamento, piedade… Seja lá o que for, prefiro lidar com o incômodo que estes discursos me causam a viver na cegueira do conformismo. E quanto ao jornalismo, prefiro vê-lo relatando a miséria do mundo do que sendo miserável ao coadunar com a passividade.

Naiana Rodrigues

Naiana Rodrigues é professora do curso de Jornalismo da UFC, doutoranda em ciências da Comunicação (USP), pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-USP) e do Praxisjor (UFC). Destaca-se: é também fashionista por natureza.

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