Cinema e Audiovisual

Eduardo Coutinho: quando a simplicidade é sinônimo de complexidade

Quando soube da notícia da morte de Eduardo Coutinho, fui à lona. Como quem é comunicado da perda de um ente querido, não contive as lágrimas. Todavia, embora não tenhamos vínculos sanguíneos, partilhamos uma afeição incontornável pelo cinema, este ofício deveras sedutor. E mais especificamente pelo documentário, domínio considerado o “patinho feio” da sétima arte, não raro desprezado por público e crítica, mas que gradualmente parece ganhar feições de cisne e se impor perante a academia e o circuito exibidor.

Aliás, foi exatamente nos círculos universitários, quando do meu ingresso no doutorado, em fevereiro de 2008, que estabeleci com Coutinho um laço duradouro: parte significativa de sua obra se convertera em meu objeto de estudo por longos quatro anos. Malgrado sobressaltos pessoais, mudanças de domicílio e o falecimento de um ente amado, antecipo que foi um convívio fraterno e intenso. Daqueles que atingem um patamar de notável estabilidade, resultando assim numa tese rechonchuda e de qualidade oscilante, mas que muito me orgulha. O título conquistado tem peso: doravante preciso me acostumar a escrever ou a falar publicamente sobre este senhor, bem como a estar disponível sempre que seu nome for mencionado na mídia e nos colóquios científicos.

Encarei minha prova de fogo (acadêmica e afetiva) exatamente por ocasião de sua morte, em 2 de fevereiro último, quando fui solicitado pela redação do antigo jornal em que trabalhara para publicar um artigo sobre seu legado artístico e o impacto de sua perda. Parte do texto e de minha experiência com Coutinho reproduzo aqui na Pulga e mais uma vez me encontro diante do desafio árduo de ter de sintetizar em alguns parágrafos a magnitude de uma vida e obra; mais inóspito ainda quando nos sentimos fragilizados. Ou seja, incapazes de escrever, com tonalidades sóbrias, um texto que fizesse justiça ao talento de Coutinho.

Embora hesitante, aceitei o convite. E se o fiz, foi pelo dever do pesquisador que precisa refrear as emoções para auxiliar no entendimento do homem/arte. Assim, vencido pela tristeza, restava-me o desafio de lhe prestar um tributo. Simples, desprovido do encanto de seus filmes, mas honesto na pretensão de evocar sua glória. Passados dois meses de sua morte, estou aqui novamente a rascunhar mais algumas linhas sobre seu legado. Desta vez, espero ser mais desenvolto e hábil, já que a hesitação é menor e o coração se encontra menos atribulado.

Não gosto de epítetos e de superlativos, mas serei taxativo: Coutinho não é (diante da magnitude do artista, insisto, não se usa o tempo pretérito!) apenas o maior documentarista deste País, mas possivelmente um dos seus maiores cineastas. Um dos últimos de uma geração que, desde os anos de 1960, tem injetado vitalidade a um panorama artístico nem sempre fértil. Com uma sintomática diferença: ao contrário dos seus pares, Coutinho apenas na maturidade colheu os elogios em torno do seu legado. A espera, contudo, teve compensações: é um dos poucos artistas a alcançar o cobiçado patamar da aclamação unânime – mesmo os desafetos, insisto, reconhecem a mestria e singularidade da sua arte.

Reconhecimento que teve início com “Cabra Marcado para Morrer” (1984), documentário antológico que se converteria em símbolo da reabertura política no Brasil, além de ingressar para a lista dos clássicos de nossa cinematografia. Hoje, em tempos de rememoração dos 50 anos do golpe militar, este título reverbera uma atualidade e urgência incomparáveis, conciliando proeza artística e um notável trabalho investigativo, amadurecido nos anos em que Coutinho integrara a equipe do Globo Repórter – sim, este programa já teve dias de glória. A este filme, seguiu-se longo hiato na mídia e nas salas de exibição.

Silêncio que seria contornado em 1999: neste ano, Coutinho se reinventaria com “Santo Forte”, marco do documentário contemporâneo brasileiro. Nesta obra, eram delineadas as “premissas criativas” que fecundariam sua produção posterior, a exemplo do que acompanhamos em títulos como “Babilônia 2000” (2000), “Edifício Master” (2002) e “Peões” (2004). Tais preceitos integram aquilo que parte da crítica designaria de “método Coutinho”: a capacidade única de oferecer uma escuta deferente, sensível o suficiente para cativar a confiança do seu interlocutor, acompanhada de um notável talento para converter qualquer entrevista num encontro desprovido dos pudores e formalidades cotidianos. Evocativo de uma espécie de coesão na prática do diretor, o termo “método” empregado, embora possua fins didáticos, particularmente me desagrada, uma vez que pressupõe unidade e repetição, traços que destoam do esforço de renovação sempre ambicionado pelo cineasta. Evidentemente, tais obras portam afinidades; mas também claras diferenças.

De qualquer modo, precisemos a mágica que emana de sua arte; o artifício que encantou a crítica e a academia, e, dentro do possível, o público – documentário não atrai multidões, mas a obra de Coutinho contribuiu imensamente para nos familiarizar com este formato. Uma passagem do Novo Testamento (“no princípio era o verbo”) poderia servir de síntese à prática cinematográfica de Coutinho, uma arte que elege a fala dos sujeitos por ele abordados como fundamento maior e patrimônio inalienável. Nos títulos já citados, com freqüência nos vemos arrebatados por relatos de grande eloqüência e surpreendente teor confessional, mas que destoam da exposição gratuita evidente nos programas do tipo “reality shows”, bem como se diferenciam dos depoimentos picotados que proliferam na grande mídia. Para Eduardo Coutinho, a fala do outro, colhida em encontros que não aceitam a pressão dos relógios, é um tesouro a salvaguardar das edições deletérias. Dito isso, talvez possamos extrair aqui um preceito importante de sua arte: preservar ao máximo, no corte final que chega ao espectador, a intensidade da experiência vivida no set.

Contudo, se eu tivesse que eleger um elemento central a estes filmes, uma escolha me parece pertinente: a confiança de Coutinho na competência narrativa dos seus personagens. Em outros termos, nestes encontros, os entrevistados são instigados a revisitar suas memórias e a recapitular histórias de vida; neste exercício, o que está em pauta para o cineasta é a convicção ostentada por cada indivíduo em cena – a veracidade ou não dos relatos é um detalhe menor. Portanto, neste cinema, a palavra falada (com suas singularidades e encadeamentos próprios) ocupa um lugar central na constituição da tomada. O que não implica dizer que seus títulos manifestam desprezo pelos componentes visuais. Em certa medida, no cinema de Coutinho, a dimensão visual do plano, em vez de negligenciada, me parece ser concebida para ressaltar a desenvoltura verbal/gestual dos sujeitos em cena e convocar o espectador a uma imersão auditiva. Um ofício simples na descrição, mas de uma complexidade imensurável.

A arte de Coutinho, portanto, contribuiu para revigorar a entrevista, procedimento caro à prática documentária e tão banalizado pela grande mídia. Mas, quando tudo parecia apontar para a consolidação deste formato, num contexto em que despontavam dezenas de cineastas aspirantes a Eduardo Coutinho (ingênuos ao acreditar que para fazer uma entrevista razoável basta se dispor de uma boa pergunta), eis que o experiente diretor põe em marcha seu ímpeto pela reinvenção. Em “O Fim e o Princípio” (2005), abandona a prisão espaço-temporal que havia sido sua regra maior (filmar numa só locação e por determinado tempo) e expande seu dispositivo, incorporando o acaso no processo criativo.

A guinada radical, porém, viria em 2007, com “Jogo de Cena”, filme que, ao implodir as fronteiras entre a ficção e o documentário, questiona a prática anterior do cineasta (nos sugere que a entrevista pode inspirar mais dúvida do que confiança) e, em certa medida, o próprio campo do documentário, enquanto domínio que ambiciona produzir registros objetivos do mundo. A veia experimental do cineasta, em fina investigação formal, prosseguiria com “Moscou” (2009) e “Um dia na vida” (2010), filmes nos quais Coutinho trilha um caminho cada vez mais desafiador e inesperado. À esta altura, e não obstante a idade avançada, o diretor foi saudado pelo viés vanguardista, inspirando novas gerações de cineastas.

Mas eis que, quando muitos ansiavam por um novo projeto radical, Coutinho se desvencilha das expectativas e volta para o território do encontro, da entrevista e do relato confessional em “As Canções” (2011). Alguns críticos torceram o nariz para o filme, o último do seu legado, mas particularmente o vejo com grande apreço. É fato que ele repõe preceitos já superados pelo artista e repete formatos empregados em outros títulos (um minimalismo cênico evocativo de “Jogo de Cena”, por exemplo), mas vejo este retorno como um “círculo virtuoso” – um cineasta já idoso, nesta obra que se converte em seu canto de cisne*, retoma os princípios que o consagraram, num filme de grande força afetiva. Afinal, diante das câmeras, nunca é demais lembrar: ninguém jamais cantou com o entusiasmo e a paixão dos seus personagens.

Para onde seguiria Coutinho em termos artístico? Difícil indicar e, ante sua morte trágica, a pergunta permanece. Aliás, em termos de dramaticidade, é triste constatar que o cineasta teve um desfecho à altura da trajetória de alguns dos seus personagens (seja João Pedro, o camponês assassinado e figura central em “Cabra Marcado”; sejam os recorrentes casos de suicídio do “Master”; sejam os relatos de dor, perda e abandono das mulheres de “Jogo de Cena”). A vida imita a arte? Neste caso, infelizmente, a semelhança é evidente. A nós, admiradores do seu talento, nos cabe apreciá-lo unicamente pelo seu legado, uma obra de notável vigor, em vez de cedermos ao apelo fácil das manchetes policiais em torno de sua tragédia familiar.

* Dois títulos inéditos foram rodados por Coutinho em 2013 para o lançamento recente do DVD de “Cabra Marcado”, no formato curta e média-metragem, sem pretensão de chegar aos cinemas. Por ocasião de sua morte, foi noticiado que um novo projeto se encontra em finalização, mas sua conclusão é incerta. Assim, “As Canções”, para todos os efeitos permanece como seu último testamento.

Laécio Ricardo

Laécio Ricardo é (ou foi) jornalista, é doutor em Multimeios pela Unicamp e professor da UFPE. Apaixonado por gatos, tem convicção de que é cearense, não obstante pistas contrárias, e adora o mar, apesar da epiderme albina.

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