Viagem

Índia: a estrada mística para a reconciliação

Garoto imitando o deus-macaco Hanuman, considerado a encarnação do Deus Shiva

Garoto imitando o deus-macaco Hanuman, considerado a encarnação do Deus Shiva

 

“Tudo isto para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar explicar ou ser imaginado a explicar ou finalmente conseguir explicar a si mesmo que aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem. Porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos. (Ítalo Calvino, As cidades invisíveis)

Sempre gostei muito de viajar. Na verdade, essa é uma das coisas que mais gosto de fazer: conhecer novas paisagens, pessoas, diferentes culturas, experimentar novos sabores; aprender com as cidades, seus fluxos, sua gente e seu modo de viver. Sempre planejei com cuidado os lugares por onde gostaria de passar, pesquisando referências históricas, literárias ou mesmo alguma imagem vista em um filme. Dessa vez foi diferente. Não fui eu que escolhi o destino, a Índia me escolheu.

Tudo bem, eu tive um motivo; pela primeira vez desde a minha primeira aula de ashtanga yoga, em 2005, e depois de muitas idas e vindas, estava praticando diariamente (com exceção dos sábados) de acordo com o que é ensinado em Mysore, ou seja, estava dedicada como nunca antes. Mas isso não me qualificava, em hipótese alguma, a fazer minha primeira viagem para o reduto do ashtanga. Muito pelo contrário: me achava velha demais, com poucos avanços nas posturas e com pouquíssima bagagem filosófica sobre essa prática. Já havia decidido voltar para o Brasil, cuidar da minha casa e do futuro do meu filho (agora em idade de vestibular), após quase um ano e meio vivendo em Dublin. A decisão de ir antes para Mysore (terceira maior cidade do estado de Karnataka, Índia), veio de um insight em uma postura chamada “savasana” (pronuncia-se ‘shavasana’), a postura do cadáver; nada mais simbólico: era preciso deixar morrer aquilo que não mais me pertencia, deixar ir tantas coisas que ainda carregava como um peso, para renascer. Era como uma preparação para voltar para casa, pensei. E mal sabia de que casa se tratava àquela altura.

A decisão de ir antes para Mysore veio de um insight em uma “savasana”, a postura do cadáver: era preciso deixar morrer aquilo que não mais me pertencia, tantas coisas que ainda carregava como um peso, para renascer.

A decisão foi tão impulsiva que comprei minhas passagens e pedi demissão do meu trabalho sem mesmo ter conseguido o visto. Acredito que o Universo sempre conspira a nosso favor quando temos que ir e toda essa parte burocrática foi resolvida sem nenhum contratempo. Coloquei minha mochila nas costas e fui, pela primeira vez, sem nenhuma expectativa, afinal de contas não fazia ideia do que poderia encontrar. E o que encontrei foi uma coleção de sinais que me diziam:  “você está não apenas no lugar certo, você está no caminho certo”.

Não posso falar de toda a Índia, até porque dizem que Mysore é quase uma exceção; posso falar apenas do que vi, e o que presenciei foi um lugar de uma beleza contraditória: uma cidade sem calçadas e com o trânsito mais caótico que já vi, onde trafegam rickshaws, carros, ônibus, bicicletas, vacas, cachorros, pessoas e motocicletas (muitas motocicletas!), mas para cujos moradores o tempo parece passar lento já que possuem uma calma que se contrapõe ao ir e vir frenético das ruas. Um lugar cheio de cores que vibravam nos templos, nos sarees (roupa típica feminina), nas frutas e nas flores. E não só as cores pareciam múltiplas ao meu olhar, mas tudo reverberava mais intenso nos outros sentidos. Ouvi o barulho incessante das buzinas, mas também o som dos pássaros, dos macacos e dos mantras entoados em diversas casas todos os dias antes do sol nascer. Por muitas vezes senti o cheiro do lixo nas ruas e da fumaça dos escapamentos, mas também o perfume de incenso e das flores que servem de oferenda para os deuses e de enfeite nos carros e nas portas das casas. Experimentei sabores exóticos e combinações de especiarias que eu jamais teria tentado sozinha sem saber que daria certo. E como dá certo!

Sim, vi muita pobreza e muita sujeira pelas ruas, mas também uma riqueza cultural e simbólica que está presente em quase tudo: na calçada onde se desenha mandalas assinalando que o local está limpo para que Deus possa entrar; no bindi (ponto usado entre as sobrancelhas) que pode sinalizar adoração ao intelecto ou ser usado como símbolo do casamento; no ato de tirar os sapatos para entrar tanto em casa como em alguns estabelecimentos comerciais; nos pequenos “altares” existentes dentro de cada residência…

Na tentativa de entender o outro, precisei antes me concentrar em mim. E então percebi que meu maior desafio não seria viajar sozinha, mas viajar para dentro. Em uma atmosfera tão mística, a Índia me fez um convite de reconciliação comigo e eu aceitei.

Também foi possível perceber uma tradição que tenta se manter a despeito de toda a ocidentalização que vem sofrendo. Uma vez, em uma conversa com a dona da casa onde me hospedei, ela me disse que seu sobrinho (que mora com ela) irá casar no próximo ano e até me convidou para a festa, embora ele ainda não saiba. Perguntei: “se ele não sabe, como é que vai casar?”. Ela me disse que seus pais já estão à procura de uma esposa para ele. Assim que encontrarem farão o mapa astrológico dos dois; se os mapas se combinarem, aí então ele verá a foto da moça e, se gostar, é só marcar a data da cerimônia. Sim, isso ainda acontece por aqui! Eles me mostraram como comer com a mão (sem talheres), me falaram sobre deuses, sobre castas, e me ensinaram a cozinhar. Vi a dedicação deles em seus poojas (adoração, culto) aos seus mestres espirituais e aos seus mortos.

E diante de tanta informação, de tantas diferenças, era preciso me despir de algumas referências para que o novo encontrasse espaço. Foi assim que dei de cara comigo: na tentativa de entender o outro, precisei antes me concentrar em mim. E então percebi que meu maior desafio não seria viajar sozinha, mas viajar para dentro. Talvez por ter, a meu ver, uma atmosfera tão mística, a Índia me fez um convite de reconciliação comigo e eu aceitei.

Nessa viagem me deparei com um enorme sentimento de insegurança de não conseguir dar conta de um mês de prática, de não estar em nível avançado o suficiente, enfim. Obviamente que não foi a primeira vez, mas agora era diferente; resolvi que queria buscar as razões mais profundas desse sentimento em mim. Parei para pensar em todos os momentos em que me senti insegura e observei que a tentativa de acertar sempre com tamanho rigor não escondia apenas um medo de errar, mas de expor aos outros os erros cometidos. E quantas vezes não pautamos nossa existência naquilo que o outro vai pensar de nós? Acolhi minha insegurança e me aceitei com minhas qualidades e defeitos entendendo que isso não me faz melhor nem pior, mas certamente me faz mais humana.

Sinto um profundo amor por tudo o que vivi e por todas as transformações que podem, a partir de agora, me permitir uma vida com menos controle das circunstâncias e mais consciência de quem eu sou.

Me vi ainda atordoada com um medo de ser rejeitada ou, sei lá porque, de não conseguir me entrosar com as pessoas. Todos os meus fantasmas estavam apenas esperando uma oportunidade para me atormentar de uma só vez. Então me lembrei de tantas vezes que me forcei a ser quem eu não era apenas para ser aceita, para fazer parte de um grupo; e pior, com o qual eu não tinha nenhuma identificação. Abracei a menina carente que tantas vezes fui e disse a ela que ninguém precisa viver de migalhas. É de amor que se deve viver.

E como havia iniciado esse mergulho profundo visitei meus erros recentes e antigos sem, desta vez querer justificá-los ou entendê-los. Visitei-os para dizer a mim mesma: “em todos os momentos você tomou a melhor decisão que tinha condições de tomar”. E deixei que meus erros virassem cicatrizes que não doem mais. Também consegui perdoar algumas pessoas que, muitas vezes sem saber, me causaram muita dor. Enviei a cada uma delas muita energia de amor e de gratidão por terem, de alguma forma, me ensinado e ser mais forte. Também remeti, em pensamento, pedidos de perdão e espero sinceramente que sejam acolhidos.

O resumo de tudo isso é que hoje sinto uma imensa gratidão pela minha história; sem aquele orgulho que nos estufa o peito e nos faz pensar que somos melhores que os outros; sem a vergonha que nos diminui e nos humilha e sem também o drama que nos vitimiza. Sinto sim um profundo amor por tudo o que vivi e por todas as transformações que podem, a partir de agora, me permitir uma vida com menos controle das circunstâncias e mais consciência de quem eu sou. Espero estar preparada para voltar para o Brasil, porque para casa eu já voltei e ela sempre esteve dentro de mim.

PS: E aí você me pergunta: “Mas afinal de contas, você avançou na prática do yoga?”. Considerando que yoga não se limita aos ásanas (posturas) e que é uma prática que busca o auto-conhecimento, eu devolvo a pergunta: “O que você acha?”

Tatiana Chaves

Tatiana Chaves é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo. É mãe de dois meninos e busca, através do yoga, encontrar o equilíbrio necessário para reafirmar diariamente sua escolha pela simplicidade em meio à espetacularização e gourmetização da vida.

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