Nos filmes sobre jornalismo ou com jornalistas como personagens, a frase “parem as máquinas” é sempre enunciada em um contexto emocionante, em que o repórter ou a equipe consegue interromper momentaneamente a produção industrial das notícias para acrescentar uma reportagem ou uma “matéria” (qualquer tipo de texto informativo no jargão jornalístico) de última hora que mudará ou impactará a sociedade. Foi assim em The Post, para citar uma obra audiovisual mais recente, quando a então diretora do The Washington Post, Kay Graham, olha orgulhosa para as páginas impressas, no meio do parque gráfico do jornal, que revelaram ao mundo o que ficou conhecido como “Pentagon Papers”, documentos secretos que mostraram a natureza do envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
Esse foi o fato que abalou o mundo do jornalismo cearense no dia 18 de fevereiro de 2021, o anúncio do fim da impressão do jornal Diário do Nordeste, que circula em papel até 28 de fevereiro próximo. Com quase 39 anos de existência, o DN impresso sai de cena e abre espaço para o protagonismo da inteligência artificial.
Mais do que um clímax cunhado pela sétima arte, as máquinas, em particular as barulhentas rotativas, são emblemáticas de um modo de produção jornalístico, de um modelo de negócios e de rotinas de trabalho no jornalismo que, nas últimas duas décadas, entraram em um processo de transformação vertiginosa culminando, em muitas empresas de mídia, no silenciamento definitivo das rotativas e no tão anunciado e temido fim do jornal impresso.
Esse foi o fato que abalou o mundo do jornalismo cearense no dia 18 de fevereiro de 2021, o anúncio do fim da impressão do jornal Diário do Nordeste, que circula em papel até 28 de fevereiro próximo. Com quase 39 anos de existência, o DN impresso sai de cena e abre espaço para o protagonismo dos dados e da inteligência artificial. Em texto veiculado no site do jornal, sobre a mudança de perfil da empresa, chama a atenção que logo nos primeiros parágrafos (os mais importantes para o jornalismo), a empresa anuncia:
“O Diário do Nordeste, empresa do Grupo Edson Queiroz, lançou nesta quinta-feira (18) os novos produtos digitais que vão compor o portfólio de conteúdo e mídia a partir deste mês. A iniciativa faz parte da decisão estratégica de se tornar o mais relevante e acessado veículo de informação do Nordeste nos próximos dois anos.
As palavras do campo semântico que ainda o caracterizam, como notícias e reportagens, não são citadas em nenhum momento nesses dois excertos. Temos as expressões: produtos digitais, conteúdo e mídia…
Hoje, em evento destinado ao mercado e parceiros, os executivos apresentaram a estratégia digital do veículo. Ao mesmo tempo será encerrada a edição em papel, que passa a ser entregue ao assinante no formato digital. O Diário do Nordeste vai ser impresso pela última vez no próximo dia 28.”
Vale destacar o fato de que o jornalismo e as palavras do campo semântico que ainda o caracterizam, como notícias e reportagens, não são citadas em nenhum momento nesses dois excertos. Temos as expressões: produtos digitais, conteúdo e mídia, decisão estratégia e edição em papel. Claramente, nesses primeiros parágrafos, o texto fala para os anunciantes, para os parceiros de negócios. Demarcando que o jornal irá fazer negócios, conteúdos e informações.
“Iremos investir em um jornalismo ágil, profundo, analítico e com informação exclusiva; e ter um mix de canais atualizado que compreenda todos os espectros da vida do nosso leitor. Uma lista que só cresce para atender melhor ao desejo das pessoas por informação, que influencie tomadas de decisão, úteis e que ainda entretenha”, complementa.”
Aqui chama a atenção a velocidade, uma variável carrasca do jornalismo desde sua mais tenra manifestação burguesa. O investimento em jornalismo ágil diz nas entrelinhas que o jornalismo impresso era mais lento, assim como seu modo de produção, dependente de máquinas pesadas (as rotativas) e embasado na periodicidade diária. A agilidade e a “leveza” da indústria de notícias digitais obriga assim o repensar de elementos basilares ao jornalismo que conhecemos – ou conhecíamos.
Aqui chama a atenção a velocidade, uma variável carrasca do jornalismo desde sua mais tenra manifestação burguesa. O investimento em jornalismo ágil diz nas entrelinhas que o jornalismo impresso era mais lento.
Os princípios e preceitos do jornalismo moderno parecem se desarticular cada vez mais no século XXI. É o que nos diz a diretora do Diário do Nordeste quando enfatiza que a produção do veículo irá atender “ao desejo das pessoas”. Essa frase simples, enunciada talvez no calor do momento das mudanças, é a síntese de uma virada de chave deontológica para o jornalismo, exaltado desde sempre como um serviço público, como uma atividade essencial para as democracias.
Discursivamente, pessoas e sociedade não são sinônimos. Falar em sociedade é remeter a uma formação discursiva e ideológica da vida em coletividade, da existência de um espaço público. Já a palavra pessoas remete a uma formação ideológica da individualidade e da vida em privado. Portanto, os desejos das pessoas podem não coincidir com os interesses da sociedade, que são públicos e devem atender aos anseios de grupos, da coletividade.
Discursivamente, pessoas e sociedade não são sinônimos. Falar em sociedade é remeter a uma formação discursiva e ideológica da vida em coletividade, da existência de um espaço público. Já a palavra pessoas remete à individualidade.
A opção pelos desejos das pessoas parece assim empurrar o pêndulo do jornalismo, que se move entre o público e o privado; entre o comercial e o editorial, em direção à personalização de conteúdos e rumo à dataficação do seu modelo de negócios, cujas decisões são tomadas pela composição de bancos de dados e pelas análises de algoritmos. Mais do que lamentar o fim do impresso, acho que estamos diante de uma preocupação com a dataficação do modelo de negócios da empresa jornalística e, possivelmente, do próprio jornalismo.
O porvir do jornalismo sob essa nova égide do 100% digital, dos dados, das plataformas e da inteligência artificial é mais nebuloso ainda para os jornalistas, ora tratados como um dano colateral das mudanças e dispensados ao bel prazer dos negócios. Oras exaltados como marca, assinando colunas exclusivas para quem ainda está disposto a pagar por informação.
O jornalismo, seja o das rotativas ou o dos algoritmos, é feito por profissionais. Sentados ou de pé, eles são a força e o valor do jornalismo e a tristeza de quem fica após um passaralho é embalada pela ausência dos colegas, pelo acúmulo de funções e pela precarização das condições de trabalho, aparentemente, a única constante nas redações de grandes empresas de mídia independentemente dos suportes de distribuição de suas informações.
Recomendo olharmos de forma ampliada para o risco do jornalismo de se tornar um conjunto de consensos que não perturbam, não inquietam, não fazem barulho, assim como as rotativas paradas
O jornalista frente a todas essas transformações é interpelado pelas condições de produção a se adaptar, a se reinventar, e isso não é fácil, seja pela própria situação precária de trabalho, pela dificuldade em construir uma carreira estável dada a flexibilização do mercado de trabalho e das garantias sociais para o trabalhador ou seja pela perda dos referenciais do que é ser jornalista, da identidade jornalística possivelmente construída a duras penas.
Por isso, falar na morte do jornalismo impresso não é apenas tratar da perda de um suporte, mas entender o impacto dessa transformação nas vidas de trabalho dos jornalistas, nas condições de produção do jornalismo e na circulação de informação na sociedade.
Portanto, mais do que reverberar uma querela infértil entre discursos nostálgicos, de exaltação do passado versus discursos entusiastas da modernidade, recomendo olharmos de forma ampliada para esse fato, questionando não o modelo de negócios adotado por uma empresa jornalística, mas se interrogando se esse modelo privado de jornalismo, personalizado e dataficado, corre o risco de se tornar um conjunto de consensos que não perturbam, não inquietam, não fazem barulho, assim como as rotativas paradas.
Naiana Rodrigues
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