Identidade

Pelo direito de ser outro

Andy Warhol em um self-portrait

Andy Warhol em um self-portrait

 

Um dia desses, estava eu numa dessas “fertinhas” da vida, rodeada de rapazes que ficavam com rapazes, de moças que beijavam outras moças ardentemente e de rapazes que beijavam rapazes, mas também gostavam de bitocar e “amassar” as moças. E aí, antes de pedir que o mundo parasse para eu dar uma descidinha, lembrei, quase que de imediato, de outro momento em que participava de uma banca de monografia, quando um colega disse que a discussão de identidade estava superada academicamente falando, meio démodé.

Pensei, pensei, li, li sobre relacionamentos livres, bissexualidade, poliamor, buscando a resposta para as interações que vi na noite, mas não paro de pensar mesmo é na identidade, no Stuart Hall e na colocação do meu colega, para quem, acredito eu, a identidade é tida como um conjunto de rótulos fechados e estanques. E, desse ponto de vista, sim, ela está completamente superada.

Mas é difícil pensar na superação da identidade dualista e fechada quando ainda nos comportamos como homens cartesianos, classificando o mundo em pares de opostos que não se encontram, se misturam, dialogam. Preto ou branco; direita ou esquerda; homem ou mulher; brega ou chique; vilão ou mocinho, heterossexual ou homossexual, etc. A classificação em categorias com limites e definições nos dá certa segurança para entender o mundo. Durante muito tempo, nos foi necessário pensarmos em termos exclusivos ou duais.

Mas os anos de 1980 chegam, e para quem diz que esta foi uma década perdida, não entende a revolução que os pensamentos do momento trouxeram para a cultura. Junto com Madonna e Michael Jackson, na cultura pop, Derrida e Lyotard despontam na cultura erudita desconstruindo tudo o que era aparentemente sólido, inclusive as identidades.

A pós-modernidade traz como maior benesse a possibilidade de percebermos a complexidade e que aqueles rótulos hermeticamente construídos não conseguiam mais dar conta de um mundo ambivalente ao extremo.

A “famigerada” pós-modernidade – discussão também old fashioned, para muitos, no âmbito científico – traz como maior benesse, a meu ver, a possibilidade de pensarmos no “para além”, de percebermos a complexidade e que aqueles rótulos hermeticamente construídos não conseguiam mais dar conta de um mundo ambivalente ao extremo.

Uma década inteira se passou, a pós-modernidade continuava a inquietar, muitos jovens ouviam Nirvana, desfiavam seu jeans e o jamaicano Stuart Hall tentava compreender como a identidade cultural se comportava na contemporaneidade. E, assim, ele alertava que uma identidade não é suficiente para nos definir, pois somos compostos de múltiplas identidades, temporárias e que ficam estagnadas por algum tempo, nos garantindo certa segurança.

Pensar desse jeito já garante certo alívio, mas ainda não resolve o problema das classificações, pois essas identidades podem muito bem ser construídas com base em tipologias e categorias fechadas: mãe, profissional, tradicional, elegante, homossexual, etc. A inquietação volta, pois tenho que escolher com o que me identificar e, somente depois de um tempo, posso me identificar com o oposto do que sou hoje. Ou seja, o sujeito tinha que escolher uma posição. É quase uma releitura da lei da física de que um corpo não pode ocupar o mesmo lugar no espaço. Não há lugar para a contradição. E, assim, voltamos mais uma vez ao cartesianismo.

E, agora, recordo da minha orientadora do mestrado que costumava me lembrar de que o homem é contraditório por natureza. E que há lugares sociais e culturais em que essas contradições são aceitáveis e outros em que são completamente banidas. Portanto, se a coerência é uma cobrança dominante, por exemplo, ser contraditório é ser diferente. Apenas isso, e não ser bom ou ruim, melhor ou pior.

Antes que cheguemos a um impasse, retomo o mesmo Hall acompanhado de Katryn Woodward que também me falaram das identificações e de que nos construímos, enquanto sujeitos culturais, mais pelas diferenças do que propriamente pelas identificações, que aparecem em um segundo momento nessa formação.

Em linhas gerais, só sei quem eu sou, porque sei que sou diferente de você. E a beleza dessa conclusão, para mim, particularmente, está no fato de que ela coloca em primeiro plano o reconhecimento do outro, da alteridade, de um exterior a mim, e tira da identidade o peso de uma construção solitária, subjetivista e interiorizada. A identidade se ergue no encontro, na minha interação com o outro, com o fora de mim.

Só sei quem eu sou, porque sei que sou diferente de você. (…) A identidade se ergue no encontro, na minha interação com o outro, com o fora de mim. 

As diferenças atraem e, ao mesmo tempo assustam, exatamente porque o que reconhecemos como diferentes são os sujeitos fora dos padrões, que vivem para além dos limites, das definições, das classificações. É aqui onde reside o problema, a rejeição, a xenofobia, o preconceito e também a violência. O pensamento dualista levado ao extremo faz com que se considere o outro, o diferente como inimigo ou como inferior. Os homossexuais já experimentaram muito desse ódio sem justificativa, mas também o menino obeso que sofre bullying no colégio e a menina muito alta para a média da idade que usa roupas engraçadas e vira motivo de chacota.

Não estamos preparados para o diferente. Essa é questão. Mas ele avança e se mostra em comportamentos de moda, estilo de vida, sexualmente falando e afetivamente também. O diferente não se enquadra nas categorias convencionais nem nas tipologias de mercado, que dirá na legislação civil. Mas está por aí, nas festas, nas ruas e nos consultórios psiquiátricos e psicológicos, tentando entender que ser diferente não é problema, mas compreendendo que a sociedade aceita com mais “simpatia” os iguais, apesar dessa igualdade ser um discurso forjado, muitas vezes, em torno de identidades individualistas e identificações fracas.

Como vocês podem perceber, essa discussão pode ser travada em diferentes áreas, da política às questões de gênero. Mas, por enquanto, ela me acalenta quando me deparo com o diferente por aí e quando sinto um desejo incontrolável de encerrar minha conta no Facebook ou sair excluindo perfis da timeline como se não houvesse amanhã. Toda vez que vejo uma opinião com a qual não concordo – desde que ela não tenha teor preconceituoso – penso: é apenas o diferente, Naiana, é apenas o diferente!

P.S – Concordo com o colega de que já temos identidades demais compreendidas, precisamos olhar sim para as diferenças que se apresentam.

Naiana Rodrigues

Naiana Rodrigues é professora do curso de Jornalismo da UFC, doutoranda em ciências da Comunicação (USP), pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-USP) e do Praxisjor (UFC). Destaca-se: é também fashionista por natureza.

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