Gênero

Cabeça de homem

Ilustração: Érica Zoe

Ilustração: Érica Zoe

 

A única saída para o homem contemporâneo é se emancipar

Em “Teoria King Kong”, Virginie Despentes nos convida a pensar a figura da besta no filme “King Kong”, embora o todo do livro não trate apenas dessa pequena alegoria: reflete sobre a vida da própria Despentes, feminismo, classe social, papel da mulher em suas diferentes facetas, estupro, pornografia, punk-rock e um apanhado de outras tantas coisas. Despentes diz escrever a partir de um posicionamento feminista não liberal. Mas o que isso poderia, de fato, significar? É matéria a deixar para as feministas — caso aqui escrevesse uma delas, é bem provável que lhe interessasse falar desse tema ou mesmo dos outros assuntos listados antes; entretanto, quem redige estas linhas é um sujeito cis, heterossexual, a quem só cabe seu gênero e como esse gênero se comporta, pelo simples fato de que não posso me colocar na pele do outro gênero. Sobre isso, entendi que meu papel não está, e com razão, na luta ao lado das mulheres; para isso existe a sororidade. Devo compreender que o agente político para a emancipação do gênero feminino e das demais manifestações sexuais são, unicamente, estas mesmas manifestações — e a prática da teoria feminista levada a cabo pelas mulheres, cis ou não. Proponho que meu lugar é apenas o de me afastar e assim o é o de todos os meus semelhantes, tornando mais fácil a luta das mulheres; mas sempre cooperando, quando solicitado, com tais movimentos, suas pessoas, suas classes e nunca exercendo o papel de agente político libertador. Esclarecido este ponto, adentremos no que deve ser devido a um homem cis, heterossexual e a uma futura teoria de tal gênero (coisa que só será possível observando-se atentamente o exemplo das vanguardas feministas): vejamos o que se pode extrair de um livro feminista com as características de “Teoria King Kong”, um grande livro.

Na civilização, qual metáfora de uma condição sexual prévia à ordem estabelecida pela sociedade industrial, King Kong representa o caos contra a civilização, mostra-se como pornografia diante de toda a cidade, e, como pornografia, deve ser controlada, vez que é um mal.

O filme “King Kong” está, certamente, na memória de todos. Uma loura embarca num navio cheio de homens. Dirigem-se a uma ilha que não figura em nenhum mapa, com uma população aborígene como o são todas, isto é, asquerosas — e ser asqueroso é sempre não ser civilizado —, mas essa ilha tem algo de peculiar: está povoada de criaturas aparentemente desprovidas de genitais e sem um claro gênero identificável, embora suas estruturas polimorfas sejam, em muitos casos, análogas, pornograficamente análogas, a uma arte fálica sem igual. O famoso ou a famosa King Kong carece, claro, de peitos, de pau, de vagina, de qualquer atributo sexual. “É a porta entre o homem e o animal, entre o bom e o ruim, o primitivo e o civilizado, o branco e o preto. Híbrido, anterior à obrigação do binário. A ilha do filme é a possibilidade de uma sexualidade polimorfa e hiperpotente. Isso é o que precisamente o cinema quer capturar, exibir, desnaturalizar e finalmente exterminar.”** Assim, como explicação de uma utopia, vez que anterior à vida primitiva, Despentes nos mostra como a loura se sente selvagem e primitiva, ou seja, segura e livre, fisgada pela mão não binária de King Kong. No entanto, quando a mulher é levada pelo homem branco para a civilização, percebe como seu resgate foi apenas um pretexto para prender a besta. Na civilização, qual metáfora de uma condição sexual prévia à ordem estabelecida pela sociedade industrial, King Kong representa o caos contra a civilização, mostra-se como pornografia diante de toda a cidade, e, como pornografia, deve ser controlada, vez que é um mal. Mas as pessoas querem arriscar-se a ir vê-la, ainda que seja de uma maneira a não sofrer os danos físicos ou morais que se supõe que a pornografia carregue intrinsecamente. Assim, o animal é golpeado, martirizado, e a bela é desposada pelo galã heteronormativo; venceu, então, a nova sociedade industrial e seu arranjo heteropatriarcal. King Kong é sua epopeia.

Depois de todo esse caos, passemos às revoltas do movimento feminista, tão significativo para o século XX, quando as mulheres tomam a iniciativa de sair à rua para reivindicar direitos ao voto e quetais, quando as mulheres assumem postos de trabalho antes reservados aos homens, quando o movimento, na rua e nas instituições, começa a adquirir sua grandiloquência atual; depois de toda essa epopeia da sexualidade que é King Kong, na qual a mulher encontrou um rumo para se desmitificar e soube se emancipar do jugo do homem, embora ainda falte um longo e tortuoso caminho, pergunta-se: “Onde ficou o homem?” O homem que raptou King Kong, o homem que ao final se casou com a bela e exibiu a besta abatida diante da civilização — porque, no fim das contas, parece que a bela soube se separar desse homem, soube lutar pelo divórcio, pela independência financeira, por uma teoria mais que invejável. Despentes destaca: “Como se explica que nos últimos trinta anos nenhum homem tenha produzido nenhum texto inovador sobre a masculinidade? Eles que são tipicamente loquazes e tão competentes quando se trata de discorrer sobre as mulheres? Como se explica esse silêncio em relação a eles mesmos? Porque sabemos que quanto mais falam, menos dizem sobre o essencial, sobre o que têm realmente na cabeça. Talvez queiram que sejamos agora nós que falemos deles? Querem, por exemplo, que digamos o que pensamos dos estupros coletivos? Diremos que eles querem mesmo é foder entre si, olhar pros paus uns dos outros, excitar-se juntos; diremos que eles têm vontade de meter nos cus uns dos outros”. Daí vem a questão. O homem com a sua condição privilegiada presume que seu posto é inamovível e que o conflito pode ser deixado de lado? Nós, homens, que pouco a pouco cedemos inexoravelmente nossos lugares às mulheres, mesmo atuando ativamente como machistas, nós deveríamos nos perguntar: por que não assumimos o papel de nos renovar, de nos reinventar, por que não deixamos de falar tanto das mulheres e de nossos próprios desejos masculinos por elas, por que não paramos de nos separar em grupos — de um lado homens, de outro mulheres? (E isso é coisa que acontece a cada vez que sentamos num bar para forrar as tripas de cerveja.) É para não revelar nossos sentimentos? Por que não atuamos de modo que, de nossa parte, façamos com que nossos iguais abandonem os velhos hábitos do aparato heteropatriarcal e passemos de uma vez por todas ao terreno da sensibilidade e da ação sobre nossa condição sexual?

Nós, homens, que pouco a pouco cedemos inexoravelmente nossos lugares às mulheres, mesmo atuando ativamente como machistas, nós deveríamos nos perguntar: por que não assumimos o papel de nos renovar, de nos reinventar?

É evidente que os homens, durante todos esses anos de prática e luta feminista, só temos servido para exacerbar o conflito. Não nos emancipamos da mulher, enquanto ela já se emancipou de nós. “She wakes up/she makes up/She takes her time/and doesn’t feel/she has to hurry/She no longer needs you.” A situação dos homens que se dizem, hoje, e se disseram, no passado, feministas é ainda mais aguda: a teoria feminista conseguiu arremessá-los de lado, cedendo a elas espaço em governos e na vida social, mas, embora necessária, essa reconfiguração de forças não é suficiente, porque, mais do que conceder a elas simbolicamente um espaço de ação, é chegada a hora de que nos emancipemos nós. A mulher, por seu lado, já saiu da casa dos pais e do quarto do marido. É nossa vez de sair do lar materno, deixar para trás a casa a que as mulheres, com sabedoria, já abandonaram e ir cuidar dos filhos, falar dos sentimentos, confessar as pequenas vicissitudes e criar uma teoria que nos emancipe como gênero fraco — que, em verdade, é o que temos sido sempre, sob o amparo da mulher que escravizávamos. O homem criou a sociedade heteropatriarcal e se sente seu dono. Parece que ali não precisa modificar em nada seu comportamento de homem hetero. Nem mesmo falamos dos estupros e das violências que cometemos: deixamos, nesse aspecto, tudo a cargo da mulher, como se não tivéssemos participado de nada. Pois já é hora de que, como diz Despentes, confessemos que gostaríamos de ser penetrados pelo cu, ainda que disso as mulheres também tenham de se encarregar.

 

*Tradução de Alan Santiago

**Os excertos foram traduzidos a partir da edição em espanhol da obra de Despentes.

Lucas Lima

Lucas Lima é escritor e comunista. Mora na Espanha.

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