Crônica

Groucho Marx e o amor de si

Groucho3

“Amor é dado de graça. É semeado no vento. Na cachoeira, no eclipse…”. Assim Carlos Drummond de Andrade alinhava um dos poemas mais bonitos da literatura brasileira. Se não fosse belo pelas palavras, seria pela maneira delicada de dizer uma verdade muito dura: o amor é escolha. Por mais que nos esforcemos para merecê-lo, não há peripécia, adorno ou mesmo imolação que consiga nos dar aquilo que também é atributo do outro; o gesto de nos escolher por aquilo que somos.

É isto: amamos pelo que o outro diz de nós, por aquilo que nele nos cala e, nesse sentido, não há esforço que molde esse intangível encontro. Digo que a dedicação só se sustenta porque algo nesse sentimento de encaixe se atualiza. “A gente se escolhe”. 

É isto: amamos pelo que o outro diz de nós, por aquilo que nele nos cala e, nesse sentido, não há esforço que molde esse intangível encontro. É claro, a maturidade nos mostra que só se sobrevive àquilo que se constrói a partir desse encontro. Mas meu ponto aqui não é o da pertinência, do tempo e daquilo que vai se urdindo a partir desse encontro. É precisamente o contrário. Digo que a dedicação só se sustenta porque algo nesse sentimento de encaixe se atualiza. “A gente se escolhe” é uma frase que minha comadre me repete há anos com uma precisão cirúrgica a selar esse dilema.

E o que nos faz continuar escolhendo algo ou alguém? Como se diz na homilia católica, “eis o mistério da fé”. Ou desejo é falta, diria Freud. Podemos procurar explicações mil, mas a questão aqui é precisar o quanto dessa escolha é da conta do outro, e não nossa. Repito: não há esforço que molde esse intangível encontro.

Se isso serve para entendermos nossas paixões (e nos libertarmos, caso alguém não nos escolha mais), ver essa constatação pelo espelho é algo que nos impõe um olhar agudo sobre nós mesmos. Woody Allen, no enredo que certamente é o precursor de nove entre dez comédias românticas citadas aqui como exemplo, coloca essa questão em Annie Hall (1977): “Não quero entrar pra nenhum clube que aceite alguém como eu como sócio”. A frase de Groucho Marx dita por Allen atualiza o humor judaico para expor a ironia de que, quando alguém nos aceita como somos, talvez algo de errado haja aí, algo que nos faça perder o interesse porque justamente a falta é (supostamente) preenchida.

“Não quero entrar pra nenhum clube que aceite alguém como eu como sócio”. A frase de Groucho Marx dita por Allen atualiza o humor judaico para expor a ironia de que, quando alguém nos aceita como somos, talvez algo de errado haja aí, algo que nos faça perder o interesse porque justamente a falta é preenchida.

Essa referência me fez lembrar de um causo corriqueiro, mas bem ilustrativo. Loli, minha professora de alemão, ao me ajudar a procurar uma editora para minha tese e ao esbarrar com uma em relação à qual não viu defeitos aparentes, saiu-me com esta: “Grazinha, vamos procurar mais, porque está tudo muito bem, então, deve ter algo errado”. Essa história até hoje me traz boas risadas por múltiplos motivos, mas aqui vou pegar o fio da “inadequação” para descer um ponto a mais na ferida do ego. Saio do encontro com o outro (a editora, o amor, o filme etc.) e vou para o encontro com o eu.

É esse o tema que tem me pegado em rodeios como no nariz de cera que escrevi até aqui. Em específico, a falta que sentimos que nos faz tanto desejar como repelir algo – não no outro, mas algo em nós mesmos. Com o que é possível nos reconciliarmos a partir do que já vivemos e o que não pode prescindir de ainda ser vivido? Não sei se existe resposta fácil para essas questões. Suspeito que elas vão variar de acordo com o tempo histórico e com o nosso próprio tempo de vida, mas há algo nesse dilema que me intriga e foge um bocado às experiências para centrar-se em algo mais essencial.

Talvez possa dizer de forma mais precisa: e quando sentimos falta de nós e por isso “precisamos” nos escolher? E se cantássemos para nós mesmos o trecho “Olha, você tem todas as coisas/ Que um dia eu sonhei pra mim/ A cabeça cheia de problemas/ Não me importa, eu gosto mesmo assim”? É piegas e bobo, eu sei, um chavão. Ocorre que essa banalidade nos faz descer mais um degrau no argumento, indo a uma espécie de necessidade de aceitação dos nos próprios defeitos para seguir adiante em nossa escolha e aceitação do que somos. Um amor de si gabola que nos corrigi o rumo.

Com o que é possível nos reconciliarmos a partir do que já vivemos e o que não pode prescindir de ainda ser vivido? Não sei se existe resposta fácil para essas questões. Suspeito que elas vão variar de acordo com o tempo histórico e com o nosso próprio tempo de vida, mas há algo nesse dilema que me intriga e foge um bocado às experiências para centrar-se em algo mais essencial.

É como visualizar Groucho Marx sendo enquadrado por sua mãe judia em um discurso de quem tanto fez para lhe dar a luz e hoje não recebe nada em troca. O velho Groucho, diante de drama maior, haveria de pôr a ironia de lado e lustrar o próprio ego para fornecer uma significativa cota de orgulho e atenção à sua progenitora. É como ver meu afilhado, na galhardia dos seus 5 anos, exibindo-se com embaixadinhas para um grupo de crianças mais velhas. Destemido, olhava para a turma e dizia, entre pequenos chutes: “Olha o que eu seu fazer”. Deu certo, enturmou-se. Mas, no fundo, ele fazia mesmo era o malabarismo para si, em um misto de personalidade bem-resolvida, destemor infantil e, sobretudo, aceitação irreverente das suas habilidades meio falhas e meio atrevidas. “Uma pirueta, duas piruetas/ Bravo, bravo/ Super piruetas, ultrapiruetas/ Bravo, bravo/ Salta sobre a arquibancada e tomba de nariz/ Que a moçada vai pedir bis/ Que a moçada vai pedir bis”.

Muito antes de saber da existência de Groucho Marx, Didi Mocó fez esses malabares durante toda a minha infância e, confesso, sempre preferi os filmes e esquetes em que ele se dava bem no final àqueles em que saía triste tal qual o Carlito, alijado por algum galã. Vejo muito mais graça no Didi fantasiado de Maria Bethânia com o coração transbordando de pretendentes ao errante e preocupado Bonga de “Os Vagabundos Trapalhões” (1982). É como se Pedro Malasartes fosse a antítese de Groucho Marx. Sem ter muito em que se sustentar, para o astuto Pedro não havia espaço para ironias autodepreciativas, mesmo que cheias de charme.

Aliás, passei a infância escutando minha avó me falar das aventuras do Malasartes, uma espécie de MacGyver do sertão, a léguas de distância de qualquer Cinderela encantada. Eram histórias de um pobre coitado que, com um saco, três pedras, um graveto e muita esperteza conseguia quebrar o encanto da princesa, vencer o desafio do rei e ganhar seu quinhão no reino. Ah, os descendentes de Lazarillo de Tormes! Não à toa meu coração disparou ao ver João Grilo, do genial Ariano Suassuna, com seus causos sobre a cachorra que havia deixado um testamento, o gato que “descomia” dinheiro e a gaita mágica que ressuscitava gente. O Grilo enganou o padre e o bispo, o padeiro e sua mulher, o cangaceiro chefe do bando e, não contente com a façanha, diante do diabo, não usou de autocomiseração boba. Como ele mesmo anunciou, de besta só tinha a cara, e se saiu com um trunfo maior do que qualquer santo, apelando à Nossa Senhora, a Compadecida.

Um detalhe que vale menção é que Grilo faz seu chamamento sem solenidades e com um verso para lá de maroto: “Já fui barco, fui navio/ Mas hoje sou escaler/ Já fui menino, fui homem/ Só me falta ser mulher/ Valha-me Nossa Senhora/ Mãe de Deus de Nazaré”. É como ele mesmo diz: a mãe da Justiça, a lhe acudir, sabendo exatamente a peça que o Grilo é. Mas, antes, foi ele próprio quem não desistiu de si mesmo diante de todas as suas imperfeições e, muito provavelmente, até por elas. Queria estar no clube, era tudo o que ele tinha. Em uma análise psicanalítica de botequim, o Grilo havia escolhido a si próprio. Podia ensinar a Drummond o avesso do seu poema: “Amor é dado de graça. É semeado no vento. Na cachoeira, no eclipse…” o Grilo amou-se, sabe Deus (ou Nossa Senhora) o porquê. Mas é fato que, de alguma forma, supriu a própria falta reconciliado que estava consigo, com o que havia de bom e ruim.

Mas, antes, foi ele próprio quem não desistiu de si mesmo diante de todas as suas imperfeições e, muito provavelmente, até por elas. Queria estar no clube, era tudo o que ele tinha. Em uma análise psicanalítica de botequim, o Grilo havia escolhido a si próprio. Podia ensinar a Drummond o avesso do seu poema: “Amor é dado de graça. É semeado no vento. Na cachoeira, no eclipse…” o Grilo amou-se. 

Eu volto a pensar nisso, como se houvesse solução para esse mistério contínuo do movimento de quando somos gentis conosco e quando nos torturamos. Penso que talvez uma arenga bem dosada nos sirva de medida, já que ela nos provoca, mas também nos acaricia com um humor necessário à vida. A chave me parece ser mesmo querer fazer parte do clube. Mesmo que ele não exista de fato, há algo que se sobressai naqueles que, enfim, fazem essa escolha. Acho que é um pulo não apenas por escapar, mas sobretudo por viver. “A esperteza é a arma do pobre”, diz a Compadecida diante dos pecados do Grilo.

Há alguns anos tive o privilégio de entrevistar Ariano Suassuna e lhe perguntei justamente sobre o encantamento e essa salvação pela astúcia. Ele me respondeu: “Sou uma pessoa que, com 80 anos de idade, ainda continuo animoso”. Por isso, sua literatura tinha esses personagens que enfrentam o real com uma espécie de galope mágico. Suassuna perdeu o pai assassinado ainda criança e viu sua mãe esconder o paradeiro do assassino para evitar que um rastilho de vingança destruísse a vida dos filhos. Foi compreender isso adulto. Dizia-se um homem assombrado até que sua esposa Zélia lhe aliviou o coração. Quando a conheceu, gaiato como ele só, Ariano disse a sua irmã Germana: “Hoje, na Rua Nova, uma galeguinha maravilhosa, linda, olhou pra mim com cara de alma que tá pedindo reza”. Ariano teve uma sorte imensa por Zélia ter lhe escolhido, dessa sorte dita por Drummond, que é do outro para conosco. Mas, acho que em algum momento ele mesmo escolheu a si mesmo como um ser animoso que era.

Nem sempre é possível seguir em frente pondo os pés sobre um alicerce imperfeito. Há pendências que precisam ser resolvidas para que não retornem sempre numa sabotagem cada vez maior, é fato. Mas também há uma hora em que a gente deve se escolher como escolhe o outro que enuncia nossas faltas e nosso desejo. Talvez por isso mesmo demos esse passo quando entendemos o que de nós pode ser aceito mesmo que nos doa. “Quatro cambalhotas, cinco cambalhotas/ Bravo, bravo/ Arquicambalhotas, hipercambalhotas/ Bravo, bravo/ Rompe a lona, beija as nuvens, tomba de nariz/ Que os jovens vão pedir bis/ Que os jovens vão pedir bis”. Salve o Grilo Saltimbanco Malasartes!

 

Grazielle Albuquerque

Grazielle Albuquerque é jornalista, cientista política e arengueira. Criou a Pulga ainda na faculdade com um grupo de amigos. Hoje revive a meninice e a aventura da escrita. É viciada em história, política, café e música. Cultiva o bom humor e tem um quarto azul.

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