Crônica

Das Ding

 

Das Ding2

O local preciso era 14 paradas após a estação de metrô mais longínqua na qual eu já havia posto os pés. Por outro caminho, pegávamos a condução em frente a universidade, descíamos 2 paradas depois para então pegar outro ônibus, percorrer mais 11 paradas e finalmente chegar àquele ponto onde ainda restavam mais 14 até o destino final. Repito: era o lugar mais distante em que havia estado e aquilo me atingiu de diversas maneiras. Era o outro ateando fogo ao conhecido que havia em mim.

O que a gente faz para se despedir quando não parece ser possível se despedir completamente? A gente viaja. Vai rumo a deixar algo, mas cuja jornada acaba impregnando o mensageiro daquilo que ele iria entregar. 

Se esse texto fosse um mapa colocaria uma marcação naquela coordenada que foi das grandes fronteiras do meu enfrentamento. Há um desenho animado antigo chamado Cavalo de Fogo (Wildfire, 1986), nele uma menina cruza um portal dimensional para um mundo ao qual ela pertence e que, ao mesmo tempo, lhe é estranho. Uma relação fantasiosa entre um rancho em Montana, no oeste norte-americano, e o planeta Dar-Shan. Uma parte do que ela é está em cada lugar. Referência que pego emprestada como uma espécie de caricatura do idílio, da travessia abrupta, daquilo que de maneira infantil nos toma. Acho mesmo que a gente passa boa parte da vida procurando em uma paisagem e em algo externo a representação do que somos em uma fração muito íntima da nossa psiquê. Ocorre que, algumas vezes, é uma pessoa quem nos apresenta essa paisagem externa que nos endereça a esse destino interno. Como se alguém nos convidasse a esse caminho.

É um oximoro. Um paradoxo. O que está fora e ao mesmo tempo mora dentro. “Rua Leonor/Rua Semente”, eu escutava no segundo andar do ônibus enquanto percorria aquelas 14 paradas que eram o trajeto que tanto me acolhia como me provocava. E esse dilema me tomou de assalto porque simplesmente aquela paisagem era um imã de polos opostos. Quanto mais eu queria largá-la, mas ela fincava uma raiz dentro de mim. Em síntese, é percurso que enseja uma pergunta: O que a gente faz para se despedir quando não parece ser possível se despedir completamente? A resposta é: a gente viaja. E viaja como quem tenta, parte em uma missão. Vai rumo a deixar algo, mas cuja jornada acaba impregnando o mensageiro daquilo que ele iria entregar.

“Tão Forte e Tão Perto” (Extremely Loud & Incredibly Close, 2011), adaptado do romance Extremamente Alto & Incrivelmente Perto de Jonathan Safran Foe é uma espécie de petardo da Sessão da Tarde sobre esse tipo de Odisseia íntima. No filme um menino escuta do pai uma história sobre o 6º Distrito, uma parte perdida de Nova Iorque cuja ideia serve de bússola para a procura de um lugar imaginário. É uma relação preenchida de histórias, com uma linguagem própria. Diante das dificuldades do filho em se relacionar, o pai criava um jogo para fazê-lo mover-se e ir, ao seu jeito, enfrentando seus medos. É o preâmbulo do enredo que, de fato, começa com a morte do joalheiro Thomas Schell e segue pela expedição que o pequeno Oskar empreende na tentativa de achar o dono para uma chave encontrada nas coisas de seu pai.

 Eis o paradoxo do filme e daquilo que nos afeta. É sentir falta de algo quando o objetivo era justo não sentir.  Trata-se de um estranho percurso em que a gente se transmuta na tentativa de abandonar o que nos constituí. É sobre um movimento. 

A busca pelo destinatário desconhecido é um exercício que faz Oskar revisitar a cidade além dos muros, como Thomas sempre quis. O menino saí cruzando muitas fronteiras que vão se refletindo umas nas outras, como se olhássemos os espelhos em forma de triângulo no fundo de um caleidoscópio. Percorre os bairros além de Manhattan, atravessando a memória de quem ele próprio era ao lado do pai. São partes de si que vão se transformando pela jornada sem, no entanto, mudarem completamente. Dentro e fora. O oximoro. O caminho para viver seu próprio luto.

Podia ser a jornada bíblica de Tobias para encontrar a cura de Tobit ou alguma missão de Zeus dada a um herói grego. O recurso é antiquíssimo. O 6º Distrito, a chave ou o que mais puder tomar a imagem de algo a ser encontrado e devolvido ao seu lugar. Na verdade, essa “coisa” (das ding, diria Freud) é o sentimento fora de um espaço que lhe caiba. É preciso gastar certa energia na tentativa de, finalmente, devolver-lhe um sentido, restaurá-la. A coisa, tal como o choro que acalma. Na sua expedição de reconhecimento, ao cruzar diversas fronteiras, Oskar Schell diz: “Eu estava me aproximando do meu pai. Eu estava perdendo-o”. Touché!

Eis o paradoxo do filme e daquilo que nos afeta. É sentir falta de algo quando o objetivo era justo não sentir. Recordo o quanto já gastei de palavras no exercício de racionalizar. Não se trata de um não-lugar, do espaço da barganha. Tampouco é o passado visto da perspectiva de quem hoje compreende e aceita que não há mais afeto. Não sendo sobre o lugar e nem sobre o tempo, trata-se de um estranho percurso em que a gente se transmuta na tentativa de abandonar parte do que nos constituí. É sobre um movimento. Mas, suspeito que essa seja uma jornada impossível, visto que há algo em nós que não pode ser descolado, apenas deixa de estar fora para encontrar um pouso dentro. Contudo, após o trajeto, muda-se algo de substancial, como o estado físico de uma matéria. O gelo, o vapor e a água. Outro peso, forma, temperatura e pressão – ainda que com a mesma essência.

E qualquer elaboração da perda passa por esse sequestro de um traço que era do outro e que você incorpora no eu. Mas aí há essa dialética. Era do outro, mas já era eu. Já era. Porque se a gente é ser com. Você só se apropriou de algo que já era teu e que você tinha se apoiado nesse outro por conta desse traço. 

Isto porque as despedidas todas revelam algo que há em nós. E se esse texto é sobre o que se deixa, o percurso para decantar sentimentos, é preciso antes compreender como eles se formam. O porquê de ser impossível deixar algumas coisas por completo. Talvez das melhores explicações para essa impossibilidade, em sua plenitude, eu tenha escutado pelas palavras da psicanalista Maria Homem. Ao falar sobre o assunto, ela volta ao que une para, então, arrematar a partida: “Já percebeu que você termina uma relação e muitas vezes começa a fazer uma coisa que o outro fazia? Ou começa a fazer algo que você achava que nem gostava, mas que o outro queria que você fizesse? Você começa a fazer ginástica, começa a nadar, vai aprender uma língua, muda um estilo”.

Ao lado das perguntas, Maria Homem enceta uma resposta que me pareceu fechar um ciclo de inquietudes: “E depois de muito tempo você começa a se dar conta de que você carrega um traço que era do outro. É muito comum. Você aprende uma forma de falar, pega uma expressão que era do outro, vai cumprir um desejo inacabado do outro. Ele deixou uma música, era seu parceiro e você vai terminar de compor aquela música, vai escrever um livro de memória, vai pintar um quadro… Você vai elaborar aquela perda”. Nesse apanhado de frases, em uma costura que é própria da sua fala, a psicanalista revela essa espécie de sintoma que é a nossa busca por percorrer um caminho que tanto nos preenche como no tira algo.

É nesse exato momento que Maria Homem mata a charada ao enunciar: “E qualquer elaboração da perda passa por esse sequestro de um traço que era do outro e que você incorpora no eu. Mas aí há essa dialética. Era do outro, mas já era eu. Já era. Porque se a gente é “ser com”, você só se apropriou de algo que já era teu e que você tinha se apoiado nesse outro por conta desse traço. Você já tinha se apaixonado, por exemplo, por esse homem porque ele já era do universo da arte, que era teu, que você desejava e que você nunca se autorizou. E quando você perde isso, então você assume esse lado, desenvolve esse lado, mesmo tendo perdido o objeto. Então, na verdade, o que é a morte, o luto e a perda? São as várias faces das metamorfoses do eu. Grandes metamorfoses o tempo inteiro, a gente vai comendo, deglutindo e sendo outra coisa.”

 É uma tentativa de aparta-se de algo visceral, de algum sentido que nos constitui. A figura do pai, um grande amor, a ideia de uma terra encantada…  É justo o exercício de desprender-se que acaba por nos revelar algo.  

É o “estar com”, o mit sein, como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, que a psicanalista revela. Por isso, nunca conseguimos nos despedir de algo que em parte está em nós. Mais uma vez estamos diante de um oxímoro. Contudo, mais do que um exercício narcísico, há muito de poesia nesse movimento de nos reconhecermos em algo ou em alguém para depois nos vermos sendo esvaziados desse sentido original, justamente quanto o mais procuramos preenchê-lo. É porque talvez (apenas talvez) o luto se realize ao vermos que está dentro o que procurávamos fora. Conheço uma história de quem detestava cafés e fez um blog sobre o tema para servir de diário à sua jornada. Noutro caso, um fanzine foi artefato da despedida. Definido lindamente como “um retrato 3×4 da alma”, a brochura caseira era o artifício do que precisava ser entendido. Movimentos para gastar o que só pode ser enterrado anos depois. Ao fim, é o menino Oskar Schell descobrindo que conseguia explorar a geografia de uma cidade e os seus próprios limites sem o pai.

É uma tentativa de aparta-se de algo visceral, de algum sentido que nos constitui. A figura do pai, um grande amor, a ideia de uma terra encantada… Mas como isso está cravado no que se é, tal tentativa tem lá sua faceta quixotesca. Novamente, a viagem para deixar e ao mesmo tempo encontrar algo. É justo o exercício de desprender-se que acaba por nos revelar algo. E quantos anos não se demora nessa estrada? Lembro de um dia, no entardecer defronte a uma janela naquele ponto mais longínquo, pensar que meus passos eram muito válidos, que eu só precisava de mais tempo para estar ali. Talvez fosse o início da Aurora, como escreve Paulo Mendes Campos.

É curioso que ao finalizar este texto sobre “despedidas”, em meio a uma conversa fortuita, eu receba um fragmento escrito assim “Fiquei triste um certo dia quando soube que até as estrelas morrem. Mas, desta vez, não foi a poesia que me consolou…” Um paragrafo vindo assim, por mensagem, num diálogo na madrugada.

Esse reconhecimento de quem se é, da própria história e do desejo que já existia antes de você encontrar o outro é justo o que lhe é “devolvido” ao fim da jornada de despedida. Gorgeous and alone. Face to face, como num solo do Nels Cline.  

Sempre tive medo de me despedir, gastei tanto o tempo das coisas que algumas vezes me veio outro temor: o de que as palavras perdessem a força. Hoje entendo que é isso mesmo. Deixar ir leva tempo. É uma morte morrida e não matada. Enfraquece a memória porque algo novo é que vai ganhando vida. A viagem é, enfim, o ato de consumir. Só depois é possível compreender o novo. Por isso, também precisei exaurir alguns sentimentos. E também por isso, repito, este texto é sobre o movimento entre o espanto de ver-se apartado do futuro e o sentimento de quando já nos transformamos e não há mais lamento.

Na viagem que me dispus a fazer reconheci esquinas, percorri o caminho inteiro olhando todos os detalhes, me atentei aos letreiros, escutei os sons, pus os pés na grama, respirei tentando capturar o cheiro de éter e páprica, travei um diálogo insólito com uma senhora que desenhava sozinha pelas ruas. Exauri o que pude para então reconhecer que apenas precisei de um pouco mais de tempo para chegar até ali. Esse reconhecimento de quem se é, da própria história e do desejo que já existia antes de você encontrar o outro é justo o que lhe é “devolvido” ao fim da jornada de despedida. É uma parte sua que se revela inconteste e por isso mesmo não pode ser abandonada completamente. “Gorgeous and alone. Face to face”, como num solo do Nels Cline.

Seja como for, acho que vou dizendo um adeus fraco, agora ou depois. Quando estiver comendo um falafel do Zaim, ainda me lembrarei do que foi. Caminho feito, o passado não é mais. Muda devagar e sempre, o tempo todo, tal qual nós mesmos.

Uma charada in looping. “Finitude e eternidade não precisam ser antágonos”, sentencia minha interlocutora da madrugada. Ela que também escreveu sobre potes de vidros, armários antigos, espiãs russas, bicicletas azuis e uma série de fragmentos rotineiros de uma vida que já é outra. O oximoro. Na memória o aviso: “Rua Leonor/Rua semente”, o som que hoje escuto de outra forma dentro de mim.

Grazielle Albuquerque

Grazielle Albuquerque é jornalista, cientista política e arengueira. Criou a Pulga ainda na faculdade com um grupo de amigos. Hoje revive a meninice e a aventura da escrita. É viciada em história, política, café e música. Cultiva o bom humor e tem um quarto azul.

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