Comportamento

O que você vai fazer com a sua dor?

Foto: Eduardo Rocha

Foto: Eduardo Rocha

 

Este texto era para ser uma homenagem, algo com força de tributo e gratidão. Mas como o combustível que o impulsionou foi uma mescla de tristeza, raiva e impotência, ele resultou em uma espécie de confissão que expressa minha perplexidade com o drama que enfrentamos desde março de 2020, quando fomos alarmados com o viés insidioso e o ritmo de contaminação da suposta “gripezinha” e mergulhamos num abismo que parece não ter fim. Em poucas semanas, o mundo e a sociabilidade que conhecíamos foram interditados; e numa mudança súbita, livre de ensaios, tivemos que nos adaptar ao home office, aos remédios contra insônia e ansiedade, às máscaras e borrifadores de álcool, ao confinamento, à gestão da vida pelos smartphones.

O que você, leitor, vai fazer com a sua dor? Ou não existe angústia no seu peito, pesar nos seus dias e aflição nas suas noites?! Duvido muito. Quando um país atinge uma cifra tão expressiva, apesar de tristíssima, penso que a imensa maioria dos seus indivíduos foram, de algum modo, alvejados direta ou indiretamente por tais números.

Passados 15 meses dessa distopia chamada covid-19, e com o número de óbitos no Brasil chegando à casa das 470 mil vítimas fatais, sem nenhum indicativo claro que sugira o final desta contabilidade fúnebre, lanço aqui a pergunta que intitula este texto: o que você, leitor, vai fazer com a sua dor? Ou não existe angústia no seu peito, pesar nos seus dias e aflição nas suas noites?! Duvido muito. Quando um país atinge uma cifra tão expressiva, apesar de tristíssima, penso que a imensa maioria dos seus indivíduos foram, de algum modo, alvejados direta ou indiretamente por tais números. Posso ser mais franco: desconheço hoje, no meu círculo de amigos, alguém que não tenha tido, na sua família ou entorno próximo, um parente ou pessoa querida que faleceu ou agonizou em leito hospitalar em decorrência da pandemia. Se você não se encaixa na descrição, não comemore o privilégio; é bem provável que, em breve, você ingresse no clube. E não se trata de profecia agourenta: com a vacinação em ritmo lento e a contaminação fora de controle, não há alternativa ou feitiçaria que promova uma blindagem.

Mas me permitam assumir a primeira pessoa, como é de praxe nos meus textos, uma vez que perdi o apreço pela escrita formal e distanciada há anos. Para expressar minha relação com a pandemia, eu precisaria de um espaço bem mais amplo do que este reservado à minha coluna – talvez um podcast com horas de duração. Na impossibilidade de me envolver com tal projeto, adotemos o teclado e as palavras como aliados. Tive um 2020 duríssimo: uma suspeita de contaminação que me deixou sequelas prolongadas (picos de ansiedade frequentes, uma quinzena de forte insônia, dificuldades alimentares), o cancelamento de um pós-doutorado almejado há anos, uma queda de braço com companhias aéreas e aeroportos para conseguir minha repatriação, e a admissão daquilo que durante anos eu hesitara em encarar – minha vulnerabilidade.

Fragilidade e vulnerabilidade, eis duas palavras que têm nos confrontado nesta pandemia. Um enfrentamento nada fácil. O lado positivo é que o ser humano parece descobrir, quando está prestes a tocar a superfície do abismo, outro binômio importante – resistência e resiliência.

O pano de fundo desse pesadelo vivido de forma solitária era, evidentemente, a covid-19 e as notícias sobre a pandemia veiculadas continuamente, numa espécie de looping perverso. Numa situação como esta, de evidente fragilidade, o excesso de informação e a contundência dos fatos divulgados apenas aceleram a abertura do cadafalso. Fragilidade e vulnerabilidade, eis duas palavras que têm nos confrontado nesta pandemia. Um enfrentamento nada fácil. O lado positivo é que o ser humano parece descobrir, quando está prestes a tocar a superfície do abismo, outro binômio importante – resistência e resiliência.  Voltei, pois, ao Brasil. Claro, sem achar que findaram os meus (e os nossos!) problemas. Sim, não se encerraram.

Na verdade, de um ponto de vista pessoal, celebro minha recuperação e acho que consegui administrar meus temores; mas quando penso no drama social que temos enfrentado, e que se aprofunda em 2021, sinto um misto de cansaço, esgotamento, irritação, dor. Sim, dor e empatia. Afinal, como encarar a cifra das 450 mil vítimas fatais e tocar o dia como se nada estivesse a ocorrer, como se fosse um problema deles, dos mortos, e não nosso?! Impossível. Aderir a certo torpor para prosseguir, é compreensível; diria até que é necessário para não sermos tragados pela tristeza e pela ansiedade. Mas não se comover com números tão alarmantes, não manifestar empatia pelo sofrimento dos pacientes e pela dor dos familiares e amigos, é de uma crueldade intraduzível…

Fragilidade e vulnerabilidade, eis duas palavras que têm nos confrontado nesta pandemia. Um enfrentamento nada fácil. O lado positivo é que o ser humano parece descobrir, quando está prestes a tocar a superfície do abismo, outro binômio importante – resistência e resiliência.

 Quando o cientista Atila Iamarino, ainda no primeiro semestre de 2020, apresentou um estudo nos alertando para o risco da pandemia provocar a morte de até um milhão de brasileiros, caso nenhum planejamento efetivo e medidas de contenção fossem adotados previamente, muitos consideraram a divulgação excessivamente alarmista. Talvez estivessem seduzidos pelo desdém com que o presidente da República se referia ao problema (uma gripezinha, uma chuva), no intuito de minimizar sua contundência. Hoje, quando novas ondas de contaminação já se avizinham, e com o Brasil e a Índia na condição de párias do mundo, é provável que parte dos incrédulos (não digo todos porque, em tempos de boçalidade explícita, parte do gado prefere manter sua fidelidade a reconhecer os erros) releia as anotações de Iamarino como um trabalho profético.

Fizemos tudo errado. Uso o plural porque é preciso ser inclusivo sobretudo no reconhecimento dos erros. Da parte do governo Federal, faltou tudo – planejamento para enfrentar a crise, compra antecipada de vacinas, respeito à ciência e às autoridades sanitárias credenciadas, humildade para admitir os equívocos. Da nossa parte, faltou solidariedade e compromisso com os protocolos de segurança – uso ostensivo de máscaras, higiene regular das mãos, maior confinamento no espaço doméstico e, consequentemente, não promover aglomerações.

Fizemos tudo errado. Uso o plural porque é preciso ser inclusivo sobretudo no reconhecimento dos erros. Da parte do governo Federal, faltou tudo – planejamento para enfrentar a crise, compra antecipada de vacinas, respeito à ciência e às autoridades sanitárias credenciadas…  Da nossa parte, faltou solidariedade e compromisso com os protocolos de segurança.

Sim, estamos todos cansados e ansiosos pelo retorno da vida social; afinal, cada dia de isolamento amplia uma espera já insuportável. Mas a desculpa (compreensível até!) da higiene mental não pode justificar condutas precipitadas e a baixa da guarda, sob o risco de prorrogarmos o quadro atual de modo indeterminado. E não adianta bradar que na sua residência todo mundo faz o “dever de casa”; estamos diante de uma tarefa que precisa ser abraçada coletivamente e de modo massivo. Do contrário, acumularemos novos fracassos. Em outros termos, precisamos convencer as partes resistentes sobre a importância de aderir a tal esforço. Não é fácil, não é agradável – do lado de lá, há cegueira e intransigência. Mas é preciso perder o pudor e partir para a abordagem verbal lúcida, consciente, ainda que não tenhamos garantia de vitórias. Mas vai que alguém acate a nossa orientação; será, no mínimo, mais um que se despe do manto da incredulidade e do negacionismo.

Estou quase finalizando o texto e volto a pensar nos 470 mil mortos; vidas que sofreram em isolamento, vítimas que não foram devidamente veladas ou pranteadas, lutos que não foram elaborados por familiares e amigos. Somos um país de tradição cristã e de ritos funerários consolidados há séculos. Tais ritos foram interditados de modo súbito, tendo em vista as orientações sanitárias. O que significa dizer que foram interrompidos sem que houvesse um “aviso-prévio” ou a adoção de práticas interinas. E tudo isso terá forte impacto.

Podemos não mensurar agora, mas a conta virá. Onde não há luto, eu insisto, não pode haver superação da perda e o restabelecimento do fio da vida por parte dos que permanecem vivos. No limite, sempre haverá a lembrança de uma despedida impossibilitada, de um choro não partilhado, de um abraço não distribuído. Aqui devolvo para você a pergunta que dá título ao texto: o que você vai fazer com a sua dor? Vai administrá-la de modo solitário e sufocá-la num soluço ou vai canalizá-la em ação, de modo a contribuir com os esforços demandados pelo presente?

 Onde não há luto, eu insisto, não pode haver superação da perda e o restabelecimento do fio da vida por parte dos que permanecem vivos. No limite, sempre haverá a lembrança de uma despedida impossibilitada, de um choro não partilhado, de um abraço não distribuído. Aqui devolvo para você a pergunta que dá título ao texto: O que você vai fazer com a sua dor?

Disse no início que esse texto deveria ser uma homenagem, mas cedo desisti da tarefa. Não gostaria de concluir, porém, sem fazer referência ao homenageado, um ex-professor e amigo querido que, infelizmente, ingressou na contabilidade das vítimas fatais. Seu nome: Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho. Um pesquisador notável, dotado do mais generoso dos dons na minha opinião: ser capaz de identificar e de motivar novas vocações. Sou um exemplo claro, mas estou longe de ser o único. Comigo estão outras dezenas de vozes, todas elas gratas pelos contínuos incentivos do Gilmar… Seu falecimento provocou uma comoção em nossas redes sociais.

Declarações de afeto e doces memórias se multiplicaram em postagens tocantes. Foi o nosso consolo e a despedida possível… Mas ao declinar da missão de redigir um tributo, vislumbrei outra constatação: mesmo que tivesse ânimo para avançar na tarefa, ela seria insuficiente e insatisfatória. Penso que uma homenagem à altura somente seria possível se eu pedisse licença aos colegas para partilhar todas as postagens e assim compor um texto coletivo. Apenas esse mosaico afetivo, acredito, alcançaria a intensidade da sua presença em nossas vidas.

 

Laécio Ricardo

Laécio Ricardo é (ou foi) jornalista, é doutor em Multimeios pela Unicamp e professor da UFPE. Apaixonado por gatos, tem convicção de que é cearense, não obstante pistas contrárias, e adora o mar, apesar da epiderme albina.

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