Ao contrário de muitos, não assisti a Game of Thrones (GOT) durante sua exibição regular pela HBO. O enredo que me relatavam – pejorativamente, houve quem me dissesse ser a obra um exemplar de capa e espada, que mesclava Senhor do Anéis com Caverna do Dragão – e seu eventual apelo dramático (uma dança das cadeiras marcada pela imprevisibilidade) estavam longe de mobilizar meu interesse. Mas minha resistência não deve ser entendida como atitude pedante. Estou longe da cinefilia marcada pelo elitismo. Se não aderi à febre, foi porque não me senti tragado por suas promessas. Acrescente a isto o fato de eu ter dificuldades em lidar com narrativas seriadas cujas tramas se prolongam no decorrer de temporadas. Sim, não administro a ansiedade de modo saudável.
Se você não viu a série, devo informar que este texto contém spoilers e comentários críticos. Francamente, não me enervo com vazamentos, mas entendo quem se inquieta com antecipações. Sendo assim, se pretende vê-la, abandone esta leitura. Prometo não guardar rancor. Também não tenho pretensão de ser uma espécie de voz do discernimento sobre a obra.
De qualquer forma, apenas depois do seu desfecho oficial e em virtude de um acordo doméstico para maratonar GOT durante as férias escolares, iniciei meu périplo na adaptação da obra de George Martin, possivelmente o fenômeno televisivo mais importante desta década. Se você não viu a série, devo informar que este texto contém spoilers e comentários críticos. Francamente, não me enervo com vazamentos, mas entendo quem se inquieta com antecipações. Sendo assim, se pretende vê-la, abandone esta leitura. Prometo não guardar rancor. Também não tenho pretensão de ser uma espécie de voz do discernimento sobre a obra. Partilho apenas algumas impressões; como naveguei pelas águas de Westeros e o que achei da experiência. Assim, não porto respostas; trago provocações, aponte divergências e só. E não quero ser cobrado por isso – se você é fanático pela trama e adora debates, procure outro interlocutor.
Dilemas da representação e demandas do presente
Inicio meus apontamentos com outra informação brochante: não li nenhum dos volumes de Martin, de modo que só posso mensurar GOT pelo que a série me apresenta. A fidelidade, portanto, não é critério para minha apreciação. No que se refere à obra televisiva, a primeira coisa que me causou um peculiar incômodo nas escolhas de produção/encenação é o triunfo da branquitude na saga – a repetição de um padrão étnico majoritariamente europeu em Westeros e, obviamente, a ausência de um recorte plural. E quando um perfil multifacetado desponta no continente vizinho (Essos), os personagens são construídos com atitudes e trejeitos que parecem destoar do “padrão civilizado” (formal, marcado por certo recato e solenidade) evidente nos reinos de Westeros. Um tipo de construção que vislumbráramos, por exemplo, na franquia Indiana Jones e que, àquela altura, início dos anos de 1980, já inquietava algumas sensibilidades. O que desejo dizer com isso? Em tempos nos quais os debates sobre representação (como determinados temas, questões culturais e grupos minoritários são abordados na prática artística?) e representatividade (tais grupos minoritários participam das elaborações que deles são feitas?) no cinema se avolumam, talvez fosse sensato, da parte dos executivos da HBO, ponderar suas escolhas e, claro, avaliar suas consequências.
Exemplifico. Em que medida, em 2019, por exemplo, é pertinente articular a redenção de Daenaerys como “libertadora dos escravos” (ela, uma mulher branquíssima), para em seguida, numa demonstração de adoração, fazê-la desfilar nos braços da multidão de alforriados (pardos, em sua maioria)? Não teremos visto, na história da colonização, narrativas semelhantes que edificam um herói branco e silenciam os subalternos de qualquer protagonismo no que se refere às suas próprias demandas e destinos? Não desejo ser o censor de uma obra ficcional, mas penso que a fantasia não pode se autoproclamar um território blindado às revisões que despontam na contemporaneidade (em outros termos, se é importante respeitar o universo diegético da obra – sua ambientação, digamos -, penso ser igualmente relevante ponderar o seu contexto de circulação). Assim, uma adequação entre meios e fins, não no sentido maquiavélico, talvez seja a justa medida no empreendimento artístico…
Não desejo ser o censor de uma obra ficcional, mas penso que a fantasia não pode se autoproclamar um território blindado às revisões que despontam na contemporaneidade (em outros termos, se é importante respeitar o universo diegético da obra – sua ambientação, digamos -, penso ser igualmente relevante ponderar o seu contexto de circulação).
Avaliação semelhante vale para a nudez, para o tratamento do sexo e da violência sexual. Neste quesito, reitero: a quem interessa o excesso de exposição do corpo feminino? E por que a ocultação do corpo masculino? Um moribundo Jon Snow, num rito de ressurreição, permanece despido com sua genitália encoberta, escolha que atesta um pudor incabível; enquanto isso, em muitíssimas outras cenas, diferentes mulheres, atrizes centrais ou figurantes, comparecem em nu frontal. Curiosamente, o único protagonista que tem seu pênis exposto (Theon) é castrado no decorrer da série – uma espécie de punição pela exibição do falo? Desde a sua primeira temporada, a violência sexual faz parte da saga e é sempre possível argumentar que as relações de poder e de autoridade, numa atmosfera que evoca uma remota Idade Média, eram permeadas por abusos deste tipo. Estaríamos assim no campo da acuidade histórica (ou, para quem leu os livros, de uma possível fidelidade às escolhas do autor). Mas insisto: em tempos de #MeToo, de reivindicação de empoderamento pelas minorias, de questionamento das práticas desiguais no âmbito das discussões de gênero e da emergência de um pensamento decolonial que não mais aceita o triunfo exclusivo do patriarcado e do eurocentrismo, seriam tais escolhas narrativas pertinentes? Em que medida a fidelidade histórica poderia desconsiderar as demandas de um presente que não deseja mais pactuar com injustiças? E por que, quase sempre, esta violência se opera sobre e em torno do corpo feminino? Percebam que me limito a indagar, sem avançar nas respostas. Mas se trago perguntas é porque algo me inquieta, demandando uma reflexão superior ao tempo de alguns episódios…
Uma trama que flerta com a abjeção?
Durante esta maratona, vivenciei um outro mal-estar; e este decorre de uma disposição moral-emocional minha versus a contundência do roteiro e das escolhas de encenação. Por diversas vezes, repeti a mesma pergunta: na balança da experiência espectatorial, sinto mais prazer ou desconforto com esta série? Quase sempre, o incômodo triunfava. Não tivesse firmado meu compromisso doméstico, teria abandonado a atração sem remorso… E como traduzir o mal-estar? Outra pergunta difícil. Mas como ele se refere unicamente a mim, tento esboçar uma (incompleta) resposta. Acredito que a trama de GOT é excitante, que há bons personagens (e logicamente ótimas interpretações), que algumas temporadas têm um cuidado bem acima da média na condução da narrativa. Porém, ao término de muitos episódios, me vi numa encruzilhada: determinadas escolhas no roteiro/encenação pareciam me posicionar, enquanto espectador, numa cumplicidade desconfortável, cuja analogia seria a de alguém envolto numa gangorra que oscilaria entre um sadismo desnecessário e um masoquismo inexpiável. Afetos ou pulsões que, dependendo da intensidade exposta, me constrangem. Não vejo uma obra para ser apaziguado, sei bem disso; mas não preciso escolher o que me fere, sobretudo se identifico uma desproporcionalidade na abordagem, algo que beira o abjeto.
Tentarei, se possível, aprofundar esta analogia. Há muitos exemplos na série, mas recorrerei aos embates familiares no enredo. Motivado pelo lema da roda, espécie de engrenagem que conecta e envenena os herdeiros de importantes famílias que se alternam no tabuleiro político de Westeros, GOT nos conta as disputas palacianas destas facções pelo trono de ferro; em síntese, pelo comando dos sete reinos. Um revezamento quase sempre marcado por traições e mortes trágicas. Nesta competição com ares de xadrez, onde predominam a estratégia e o conchavo, parece haver pouco lugar para a honra e outros sentimentos nobres. Importam a maquinação e as alianças. Por outro lado, aproximar-se e ocupar o trono também não é uma posição confortável, dado que todo rei, ou postulante ao cargo, no decorrer da série, está fadado à tirania, à loucura, ao autoritarismo ou, na melhor das hipóteses, à fé cega; e, no limite, sucumbe às tentações do poder e encontra seu fim. Percebemos logo, pelo menos eu o percebi, que a série nos conta, na verdade, a história do esfacelamento destas famílias e dinastias; tragadas por este elo inquebrantável, a roda, observamos a contínua queda e pulverização dos seus núcleos, episódio após episódio. Em alguns casos, sua completa extinção.
Acredito que a trama de GOT é excitante, que há bons personagens… Porém, ao término de muitos episódios, me vi numa encruzilhada: determinadas escolhas no roteiro/encenação pareciam me posicionar, enquanto espectador, numa cumplicidade desconfortável, cuja analogia seria a de alguém envolto numa gangorra que oscilaria entre um sadismo desnecessário e um masoquismo inexpiável.
Embora ciente do que designei no início de premissas da narrativa (a imprevisível dança das cadeiras; a frustração como lei geral), provavelmente desenvolvi uma empatia pelos Starks, senhores do Norte de Westeros. Em certa medida, é possível também entender GOT como uma espécie de narrativa sobre o ocaso e a posterior reabilitação do Starks, a única das grandes famílias a não ser destroçada nesta disputa. Mas, no meu entendimento, se os Starks retomam Winterfell (seu lar) e alguns dos seus herdeiros sobrevivem ao desfecho da trama, esta aparente compensação não implica exatamente um retorno da ordem. Diria até que, mesmo sobrevivendo, talvez sejam eles os que mais perdem nesta saga; e é exatamente ao ponderar o tratamento destinado aos nobres do Norte na série que meu incômodo se reafirmava. Todas as grandes casas caem, fato; mas nem todas caem da mesma forma ou recebem igual tratamento dos roteiristas. Dito de outro modo, há uma correlação desigual na abordagem. Se traçarmos um paralelo com seus principais rivais do Sul, os Lannisters, o desequilíbrio se torna evidente, pendendo negativamente para o clã do inverno.
Vejamos. No decorrer da saga, a família Stark perde seus genitores e o primogênito; seus corpos são objeto de pilhéria e expostos à execração. Não há luto, choro ou sepultamento – e sabemos que, onde não há luto, não há cicatrização e superação da perda. Acompanhamos, assim, a jornada trágica de pais que se separam e de filhos que não puderam se despedir; trajetórias fadadas a nunca se reencontrar. A filha mais velha, Sansa, permanece durante cinco temporadas submetida a ritos de humilhação diários. É mantida refém de um tirano detestável; é aparentemente salva por um aliado de conduta questionável; e, quando nenhum agravo lhe parece possível, cai nas mãos de um novo carrasco com o qual é obrigada a se casar. A união forçada se consolida com um estupro que, em termos narrativos, não encontra justificativas. Sabemos que Ramsay Bolton, o esposo, é um jovem sádico e intempestivo e que, sob sua vigilância, Sansa enfrenta agressões cotidianas (verbais e físicas). Neste contexto em que seu destino já nos fora comunicado, a encenação do estupro é desmesurada, se torna desnecessária (lembremos aqui do que eu disse acima sobre os dilemas da representação, sobre as demandas do presente e o movimento #MeToo).
Quando de sua fuga e posterior retomada de Winterfell pela família, na famosa Batalha dos Bastardos, imaginamos, nós, os espectadores, que o suplício dos Starks findará; no entanto, no início do conflito, seu irmão mais novo, Rickon, traído por ex-vassalos, é vítima da violência de Bolton. Temos aqui outra morte que, a meu ver, não encontra justificativa no âmbito narrativo, afinal Ramsay é o que já sabemos, ele deseja recuperar Sansa e matar Snow, e a batalha a que me referi seria travada de qualquer forma. Assim, em termos narrativos, o sacrifício de Rickon nada acrescenta – no máximo, potencializa o sentimento de vingança da dupla Sansa/Snow (sentimento já instalado, diga-se). Expandindo um pouco a reflexão, alguém poderia indagar: a morte de Oberyn Martell e da princesa Baratheon, esta última levada à fogueira com a anuência paterna, também não seriam exemplos de uma violência questionável em GOT?
Todas as grandes casas caem, fato; mas nem todas caem da mesma forma ou recebem igual tratamento dos roteiristas. Dito de outro modo, há uma correlação desigual na abordagem. Se traçarmos um paralelo com seus principais rivais do Sul, os Lannisters, o desequilíbrio se torna evidente, pendendo negativamente para o clã do inverno.
Responderei à pergunta recorrendo ao mesmo argumento: Oberyn morre numa situação de duelo, da qual ele participa voluntariamente – alguém, portanto, haveria de perder, não obstante a brutalidade da cena. Já a herdeira dos Baratheon, traída pela sua estirpe, tem um desfecho tristíssimo, mas em termos narrativos, ele é pertinente – leva ao abandono do pai por parte de suas tropas e, assim, à sua derrota final. De qualquer modo, se pudéssemos formular um princípio para a discussão aqui exposta, ele seria: nos casos apontados (estupro de Sansa, morte de Rickon), a abjeção não decorre da violência explícita, mas da violência desnecessária, daquilo que não é pertinente à trama e que parece apenas violentar a nós, espectadores.
Mas voltemos aos herdeiros do Norte. Concluída a Batalha dos Bastardos, e ao término de seis temporadas (lembro que toda a série tem oito!), Winterfell retorna aos seus senhores e alguma unidade familiar parece próxima. Mas como ressaltei, a reparação já não é possível. Seguindo um arco paralelo durante a errância dos Starks, Arya, a irmã de Sansa, vive um rito iniciático – uma jornada que a levará a se tornar uma assassina cujo objetivo é matar os responsáveis pelos crimes cometidos contra sua “casa”. Finalizado o “treinamento”, é somente na sétima temporada que iremos testemunhar, de fato, uma reunião familiar. Sansa revê Arya, mas o reencontro é pouco caloroso e marcado por hesitações. Nenhuma delas é mais a personagem apresentada no início da série, fato; mas o crescimento teve como ônus a perda da inocência e do otimismo, a contenção de qualquer afetividade. Para os roteiristas de GOT, crescer é endurecer e se embrutecer, implica internalizar uma desconfiança permanente e bloquear os afetos. Um aprendizado talvez importante no contexto da trama, mas que implica grande sacrifício (uma quase desumanização).
Passemos aos Lannister. Alguém evocará: mas a “casa” que se orgulha de quitar suas dívidas e cujo brasão é um leão dourado, não pagou com a morte dos seus infantes pelos crimes cometidos por seu patriarca (Tywin) e pela rainha Cersei?! Aliás, o próprio patriarca e a rainha não terminam por morrer na saga?! É verdade, a família sucumbe aos desmandos dos seus expoentes e deixa de girar a roda, como se habituara há anos. Mas, como eu disse, a comparação é desigual: nenhum Lannister caiu pela espada de uma família traída, vilipendiada por seus abusos e maquinações; tampouco, foi degolado por um adversário ou teve seu corpo dilacerado e exposto à execração (a posterior vitória de Daenarys, a meu ver, não conta nesta apreciação; afinal, os Targaryen – reduzidos a dois herdeiros e exilados de Westeros – já não integravam a roda). Fato ainda mais grave: Joffrey, Tywin e Myrcella foram velados; portanto, houve pesar, sepultamento e despedida, precisamente os elementos que facultam a continuidade familiar após a perda. E foi exatamente a impossibilidade do luto – de um último aceno em meio a dor – que marcou a sina dos Starks. Isto para não mencionar o fim agridoce reservado a Cersei, autora de algumas das piores vilanias na série: a impiedosa rainha morre nos braços do seu amor incestuoso. Confortante e complacente.
Para os roteiristas de GOT, crescer é endurecer e se embrutecer, implica internalizar uma desconfiança permanente e bloquear os afetos. Um aprendizado talvez importante no contexto da trama, mas que implica grande sacrifício (uma quase desumanização).
Retomando a lista de aflições contra os Starks, haveria uma última observação; algo que, se for pertinente, demarcaria a tragédia do clã. Pelo que entendi na série, a continuidade das famílias depende de patrilinearidade (os filhos herdam o nome do pai; apenas os homens são reis – o golpe de estado de Cersei, insisto, é um ponto fora da curva). Assim, os três filhos de Cersei são considerados Baratheon, a linhagem do pai (Robert), e não Lannister. Do mesmo modo, os filhos de Ned e Catelyn são designados de Stark (nome paterno) e nunca de Tully – e eles tampouco se vêem como herdeiros de Correrio. Tywin, por sua vez, não cessa de pedir a Jaime que deixe o posto de guarda real para assegurar a continuidade da casa Lannister. E onde quero chegar? Bem, se a premissa for legítima, Sansa e Arya não poderiam repassar o nome da família aos herdeiros, caso os tenham. Aclamado como novo rei, o “corvo Bran” é apontando como alguém impossibilitado de ter filhos. Sobra Snow. Ao desfecho da série, o outrora bastardo é punido (não pode casar e procriar); e caso pudesse, pelo princípio patrilinear, sabemos agora que ele, na verdade, é Targaryen. Assim, considerando tal princípio, a médio prazo os Starks também estariam fadados a desaparecer… Não, definitivamente eu não gostaria de ter nascido no Norte em GOT.
Como perder o fio ou a série que desandou…
Embora confrontado vez ou outra pela abjeção, optei por avançar na trama. Talvez por também ter ciência dos seus méritos. Eu só não esperava, todavia, concluir a curva da sexta temporada, que findara de modo promissor, e me deparar com o agonizante declínio da saga em sua reta final. É fato que, desejando inovar na construção do seu intrincado roteiro e apostando nas reviravoltas como mecanismo narrativo, GOT foi, na verdade, conservador. A que me refiro? Simples: gradualmente, sua fórmula virou clichê e o inesperado, de repente, se revelava pouco surpreendente. Decorre daí o que me parece ser uma lei da roteirização: todo recurso, empregado à exaustão, tende a se esgotar. Todavia, o que eu até então identificara como vício de roteiro, nas sétima e oitava temporadas se converte em incompetência criativa – a série desanda, mergulha numa espiral negativa e dela não consegue retornar.
São tantos os problemas que é difícil enumerá-los na íntegra. Há uma queda na abordagem narrativa – a condução rítmica eficiente cede lugar à precipitação e à celeridade -, os diálogos se tornam precários (perdem sofisticação) e a elaboração cuidadosa é substituída pelo espetáculo visual das batalhas e mortes gratuitas. Do ponto de vista da construção dos personagens, a matização é negligenciada e as derrapagens são evidentes – Cersei se torna uma caricatura de si, repetindo sempre a mesma expressão facial; Tyrion perde sua sagacidade, se torna careta e, pasmem, um conselheiro inábil (como um roteirista erra a mão com um personagem tão rico?); Daenarys, por seu turno, é empurrada para uma egotrip nazista pouco convincente (falarei disso à frente). E isto para citar somente três protagonistas. Mas talvez o pior pecado seja aquilo que eu vou definir como a abdicação do enxadrismo e das intrigas palacianas pelo mero embate físico, pela guerra vencida não mais em decorrência da estratégia, mas somente na ponta da espada (ou, se o desejarem, pelo bafo de um dragão!). Neste sentido, acho até que a morte de Mindinho (o verdadeiro enxadrista de GOT) é sintomática desta guinada fatídica.
Embora confrontado vez ou outra pela abjeção, optei por avançar na trama. Talvez por também ter ciência dos seus méritos. Eu só não esperava, todavia, concluir a curva da sexta temporada, que findara de modo promissor, e me deparar com o agonizante declínio da saga em sua reta final. Gradualmente, sua fórmula virou clichê.
Lamento por avançar nos spoilers, mas o exorcismo dos erros é necessário. De qualquer modo, dialogo aqui com quem viu a série da HBO e poderá, neste exercício, reconhecer ou não o seu desapontamento. A precipitação com que é conduzido o embate entre os habitantes de Westeros e o exército de mortos do “Rei da Noite” – algo que desde o início da saga se afirma como um dos principais conflitos do enredo – figura na lista de vexames. O alardeado conflito encontra solução num único episódio e, não obstante o desfecho a toque de caixa, apresenta falhas inaceitáveis: apontados como uma ameaça iminente na chamada “Longa noite”, os “caminhantes/andarilhos brancos”, a elite militar do inimigo, são apenas coadjuvantes no confronto. Uma figuração inexplicável e algo tão risível quanto a decisão dos roteiristas de, no mesmo episódio, deslocar os personagens vulneráveis de Winterfell para a cripta da fortaleza. Ora, esta batalha envolvia um adversário que convertia os mortos em parte do seu exército; nestas circunstâncias, sugerir uma cripta como refúgio é a mesma coisa que condenar seus abrigados à execução sumária.
Um outro conflito mobilizou a ansiedade dos espectadores de GOT. Em virtude do ritmo cauteloso dos primeiros anos da série, tivemos (nós, os espectadores) que aguardar seis temporadas para vermos Daenarys e sua frota aportar em Westeros. Mas também aqui a celeridade se impôs como regra e um embate central do enredo encontrou solução num único episódio. E o pior, de modo polêmico – para o tormento dos zilhões de fãs da saga – e igualmente repleto de falhas. Algumas constrangedoras: 1) soldados mercenários (a tal companhia dourada) tido como imbatíveis e que fazem uma figuração tão medíocre quanto a dos “caminhantes brancos” – 20 mil homens vencidos pelas labaredas de Drogon; 2) armas letais que mataram e lesionaram os dragões Targaryen (o “escorpião”), instaladas em embarcações e nos muros da capital de Westeros, de repente, se tornam inofensivas; 3) uma cidade de alvenaria destruída por um único dragão, cujo combustível interno deve ser superior às reservas de petróleo da Venezuela. Sobra, como “cereja do bolo”, a revelação/afirmação da loucura de Daenarys, espécie de amazona alada com forte verve piromaníaca.
Sobre este último ponto, evitarei as controvérsias. Sei que metade dos fãs diriam dracarys para os roteiristas/produtores em virtude da decisão. No entanto, apesar da fúria, colegas próximos (e fãs assíduos da série) me informaram que o destino de fogueteira da musa platinada estava escrito na estrelas – ele fora antecipado em indícios, presságios do futuro sutilmente inseridos na saga. Particularmente, não gosto de tramas que apostam na inexorabilidade do destino (de que alguém estaria fadado a uma sina inelutável), sobretudo numa série que alardeia o imprevisível como seu principal mérito; além disso, penso que o problema maior desta escolha é o fato da conversão de Daenarys, em virtude da celeridade narrativa, não ter sido articulada de modo convincente.
Particularmente, não gosto de tramas que apostam na inexorabilidade do destino (de que alguém estaria fadado a uma sina inelutável), sobretudo numa série que alardeia o imprevisível como seu principal mérito; além disso, penso que o problema maior desta escolha é o fato da conversão de Daenarys, em virtude da celeridade narrativa, não ter sido articulada de modo convincente.
Decorre desta precipitação um outro desconforto. Se, em GOT, crescer equivale a vivenciar uma experiência de embrutecimento, por outro lado, a loucura ou a tirania parecem ser o fardo daqueles que ambicionam o poder. Por esta via, se aproximar do poder ou almejar o seu exercício, implica em se deixar seduzir pelo que há de mais torpe, em se corromper ou assumir a condição de déspota. Uma leitura que ressalta a negatividade do jogo político (e até um pouco simplória), mas que desconsidera o que talvez seja a sua positividade – a oportunidade de indicar outros possíveis e de repensar o futuro. Sim, Daenarys poderia personificar o novo, não o partido de Amoedo, óbvio, mas a promessa de uma vida menos amarga em Westeros. E com isto seu roteiristas nos entregariam uma heroína vibrante, em vez de uma mulher sanguinária; uma rainha notável e destoante da contagem de tiranos que lhe antecedera. Claro, esta é apenas a minha demanda diante de um presente que não mais aceita repetir os estereótipos da desigualdade de gênero. Um desejo talvez naïf; afinal o que esperar do desfecho de uma série na qual um dos personagens mais inteligentes, o Lorde Varys, num embate verbal com Tyrion, já na temporada final, afirma categoricamente que, para ser rei ou governar, “um pau pode fazer a diferença”?! Tirem suas conclusões.
PS 1 - Sim, o último episódio foi vexatório. Acompanhemos. De início, vemos Daenarys enquadrada com as asas do seu dragão ao fundo, composição que nos leva a associá-la com uma espécie de anjo caído. É um plano bonito, admito. Em seguida, ela discursa para seus soldados; estes se encontram enfileirados numa disposição que evoca algumas tomadas célebres de “O triunfo da vontade”, de Leni Riefenstahl. Seu discurso, evidentemente, porta o delírio peculiar às bravatas do Führer. A egotrip nazista da herdeira dos Targaryen se afirma. Posteriormente, ela é morta por Snow; Drogon, seu filho-dragão, em vez de vingar a mãe, tem um insight filosófico e derrete o trono maldito, responsável pela queda de Daenarys. Decorrido algum tempo, os nobres sobreviventes se reúnem para aclamar um novo rei; ocasião em que Snow, após exigência dos Imaculados, é condenado ao exílio no extremo norte de Westeros. Apaziguados, os Imaculados partem do continente; Snow segue para sua pena. Faço uma pausa para realçar dois absurdos neste resumo. Sendo os Imaculados tão fiéis a Daenarys, teriam eles poupado Tyrion e Snow em virtude da traição do primeiro e do crime do segundo? E, uma vez que os Imaculados deixam Westeros, por que Snow, herói em batalhas cruciais da série, é obrigado a acatar uma sentença demandada por aqueles que partiram? Quem tiver respostas plausíveis, favor partilhar. Li opiniões que mencionavam que o regicida Snow, sendo o legítimo herdeiro Targaryen, deveria reivindicar sua condição de monarca; no contexto da trama (desta confusa oitava temporada), contudo, penso que tal sugestão não é cabível – além de não manifestar interesse, como poderia o jovem suceder à tia piromaníaca após a destruição da capital real, tragédia atribuída a uma espécie de herança familiar maldita? Quem confiaria em mais um Targaryen? Voltemos ao epílogo. Antes da escolha do novo rei, o anão Tyrion, num esforço metalinguístico, tenta disfarçar nosso mal-estar com uma piscadela ao espectador (“contar histórias é o que interessa”, diz ele). A brincadeira, porém, já não agrada, tampouco salva a série do seu ocaso. Aclamado o soberano, um novo conselho se reúne para deliberar os problemas do reino; o encontro, porém, revela a informalidade de uma mesa de bar… Decoro faz falta; criatividade, também.
PS 2 – Ainda sobre o imbróglio Daenarys, só uma coisa em seu arco narrativo me parece desprovida de nexo, desde o início de sua jornada. Herdeira Targaryen num lugar onde a filiação nem sempre assegura o trono (tendo em vista as traições e reviravoltas), ela não é uma cidadã de Westeros. Além disso, mobiliza um exército que concilia mercenários letais e um grupo étnico nômade completamente estranhos às estirpes orgulhosas do continente que ela almeja conquistar e subjugar. É este um ponto de partida viável? E suficientemente forte para lhe conferir legitimidade numa terra estranha? Entendemos, assim, o porquê de sua acolhida hostil em Westeros: não obstante sua importância na “Longa noite” e seu esforço para angariar reconhecimento, ela permanece uma outsider.
Laécio Ricardo
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