Comportamento

Gordofóbicos passam!

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Machistas não passarão! Homofóbicos não passarão! Essas frases já devem ter ecoado alguma vez na sua timeline como palavras de ordem de algum movimento feminista ou de causa LGBT. Elas emergem em um cenário em que as disputas simbólicas se aguçam e a violência se espraia e no qual a opressão se torna insuportável. Se por um lado cresce a intolerância de grupos religiosos e pessoas de orientação conservadora (para não dizer fascista) para com a desconstrução dos gêneros binários ou mesmo o empoderamento feminino; por outro, cresce também nossa intolerância com a opressão, a violência, mas não só a física, também aquela que se manifesta de forma hostil no cotidiano. Esse tipo de violência está na telenovela, na piada do stand up comedy, no rótulo do produto de beleza, no xingamento do motorista parado no trânsito, na academia, na discussão da relação, está em mim e em você. Todos somos vítimas e, às vezes, algozes quando reproduzimos práticas e discursos que não oprimem apenas o outro, mas a nós mesmos. Na esteira dessa esquizofrenia entre opressor e oprimido emerge um movimento que combate a gordofobia. Nunca ouviu falar ou leu sobre? Pois vamos lá!

Todos somos vítimas e, às vezes, algozes quando reproduzimos práticas e discursos que não oprimem apenas o outro, mas a nós mesmos. Na esteira dessa esquizofrenia entre opressor e oprimido emerge um movimento que combate a gordofobia.

Agregado à pauta do feminismo, o movimento contra o preconceito, hostilização e constrangimento de pessoas pelo simples fato de serem gordas ainda não tem a expressividade que merecia. Essa timidez política e ausência de campanhas com #gordofóbicosnãopassarão talvez se deva à própria natureza da violência e do preconceito em questão, cuja agressividade, muitas vezes, se mascara na brincadeira e até mesmo no conselho da “miga” sobre a dieta do momento. Porém, isso não nos impede de ficarmos alertas ao menor sinal dos discursos gordofóbicos que se materializam em práticas as quais submetem o corpo a maus tratos desnecessários em prol de um ideal de beleza inexistente, ficcional, construído graças à destreza do editor de imagens que fez aquele curso massa de Photoshop e aos devaneios de consumo de uma indústria de massa. Assim como o machismo, a gordofobia está entranhada na cultura e, pior, legitimada por ela. As indústrias da moda e da beleza que o digam, responsáveis pela popularização de padrões de corpos cuja qualidade primeira é a magreza exacerbada. Daí a tristeza de dezenas de milhares de mulheres que entram no provador de uma fast fashion e saem com a autoestima nas profundezas do núcleo da terra porque experimentaram a loja inteira e nada caiu bem no seu corpo real, de trabalhadora, mãe, professora, estudante… Ah, mas existem as lojas plus size. Apesar de ser cliente de marcas assim, olho pra elas com “rabo de olho”, isso porque aquele mesmo mercado que exclui a mulher com corpo “fora do padrão” inclui a consumidora “com curvas protuberantes” criando um segmento considerado de nicho e cobrando, muitas vezes, preços absurdos. E não vou nem entrar no mérito das publicidades das marcas com modelos que passam longe do que é ser plus size. Enfim, pagamos um preço alto por não vestir 38.

Quando você afirma que não quer comer para não engordar, é como se você estivesse dizendo “não quero comer para não ficar doente” ou “não quero comer para não ficar feia”.

Vindo do mercado, nada me assusta ou estranha, porque ele é escroto mesmo e é honesto, quer lucrar. O que mais me incomoda são as relações de poder que se constroem na ostentação do corpo perfeito, nas restrições alimentares, nas relações pessoais. Não, eu não sou fofa, não sou cheinha, sou gorda, sou saudável e não preciso do seu conselho de emagrecimento. E você, amiga feminista, engajada e magra magoa a amiga gorda toda vez que senta ao lado dela no café e solta um “ah, não vou comer nada para não engordar”, “aqui só tem comida gorda” ou “nossa, você precisa emagrecer, é questão de saúde”. Para bom analista do discurso, uma única frase basta. Quando você afirma que não quer comer para não engordar, é como se você estivesse dizendo “não quero comer para não ficar doente” ou “não quero comer para não ficar feia”. E mais, por acaso, você já recomendou a uma pessoa magra engordar para ficar saudável? Loucura, nóia da minha parte? Seja honesta com você mesma e admita que já pensou isso ou fez isso. Quer afirmação mais gordofóbica do que “miga, você está linda, está magra! Fez dieta”? É o elogio que entra como uma verdadeira punhalada porque traz em si uma realidade não dita: “antes, te achava feia porque você estava gorda”. Fica a dica: basta dizer que a miga está mais bonita, sem fazer relação direta com o corpo dela, pois a beleza pode ser também um estado de espírito e não só a obediência a medidas de cintura, aos looks e cortes de cabelo da moda.

Assim como o machismo, a gordofobia está entranhada na cultura e, pior, legitimada por ela. As indústrias da moda e da beleza que o digam, responsáveis pela popularização de padrões de corpos cuja qualidade primeira é a magreza exacerbada.

Pare de fiscalizar o corpo alheio e respeite seu próprio corpo. Não estou fazendo apologia à gordura ou gordice (para os que gostam do hype), a saúde é o horizonte de todos nós, deixar o corpo saudável é prerrogativa para viver bem, mas o saudável também pode ser o gordo, o fora do padrão, o rechonchudo, o largo, o diferente. Ao contrário do que pregam a indústria farmacêutica e as blogueiras fitness, a magreza nem sempre é sinônimo de saúde em dia, sem falar dos processos pelos quais ela é alcançada que incluem mutilações cirúrgicas e “treinos” opressores. Como diria minha mãe: tudo demais é veneno! Mesmo aquela pessoa que está muito acima do peso “ideal” por razões patológicas merece respeito e não desprezo, pena ou repulsa. Se a ideia é ser desconstruída, então, admita seus preconceitos com o corpo alheio ou com o seu próprio. A democracia pela qual tanto se lamenta nos últimos tempos não está perdida apenas pela sujeira do jogo político institucional, ela se perdeu nas entrelinhas dos relacionamentos sociais, quando, por exemplo, enquadramos os corpos gordos, ou simplesmente os corpos diferentes, em uma posição de inferioridade. Ser democrático é tratar igual os diferentes, é respeitar os diferentes, sejam eles mulheres, gays ou pessoas gordas. No bojo dos novíssimos movimentos sociais de que fala Gloria Gohn, a luta contra a gordofobia é a minoria da minoria. E enquanto não aparecerem mobilizações virtuais ou presenciais mais intensas que deem conta desse preconceito, muitos gordofóbicos, sim, passarão.

Naiana Rodrigues

Naiana Rodrigues é professora do curso de Jornalismo da UFC, doutoranda em ciências da Comunicação (USP), pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-USP) e do Praxisjor (UFC). Destaca-se: é também fashionista por natureza.

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