Trabalho

Marx sempre esteve certo

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Quem diria que precisaríamos viver uma pandemia, uma crise sanitária de alcance global, para olhar para a sociedade com mais cuidado e perceber que “tá tudo errado”. Consumismo, individualismo e desigualdade de renda caíram na conta da negatividade social, pois eram situações com as quais já convivíamos e que se tornaram praticamente insuportáveis e abomináveis para muitos quando a morte por Covid-19 se tornou uma ameaça real e imediata. Por outro lado, esse mesmo temor direcionou os olhares para dimensões e instituições sociais que vinham em um processo de desgaste, de perda de credibilidade há tempos.

A ciência, o jornalismo e o trabalho compõem o que considero a tríade dos humilhados que se revelou essencial para manter a vida hoje, entendida aqui nos sentidos biológico e cultural. Cada elemento desse trio está envolto em uma miríade de sentidos contraditórios que se amalgamam à vida cotidiana em tempos de pandemia e isolamento social. Em razão da celebração do primeiro de maio, é interessante apontar a lupa da conscientização para o trabalho, pivô de embates com os quais nos deparamos na cobertura midiática, nas chamadas de vídeo com amigos e parentes, no supermercado, na farmácia e na portaria do prédio na hora de pegar o alimento comprado via aplicativo.

Consumismo, individualismo e desigualdade caíram na conta da negatividade social, pois eram situações com as quais já convivíamos e que se tornaram insuportáveis quando a morte por Covid-19 se tornou uma ameaça.

O trabalho está em todos os lugares, não foi à toa, portanto, que Karl Marx e seus leitores, como György Lukács, enunciaram que o trabalho é o que dá sentido à vida do homem em sociedade. Para o velho barbudo e para os materialistas de plantão é pelo trabalho que o homem se diferencia dos demais seres vivos, pois através do trabalho, o homem transforma a realidade e essa transformação tem como objetivo garantir as condições materiais de existência e sobrevivência do próprio homem. Em resumo, o trabalho está no cerne da nossa própria definição de humanidade.

Os marxistas sempre defenderam a centralidade social do trabalho, até porque o trabalho é o que dá forma às mercadorias e serviços, sendo a peça-chave para a operação do sistema capitalista. Porém, por mais que eles tenham gritado a plenos pulmões que o trabalho importa, e muito, para a sanidade social, isso não impediu que o menino labor fosse humilhado pelo próprio sistema que dele depende. A tecnologia, a informação e o conhecimento já se insurgiram reclamando para si o posto de catalisadores da centralidade social. E conseguiram, a despeito de o trabalho estar sempre lá, dizendo que, sem ele, não há tecnologia, não há informação e nem conhecimento.

Para o velho barbudo e para os materialistas de plantão é pelo trabalho que o homem se diferencia dos demais seres vivos, pois através do trabalho, o homem transforma a realidade e essa transformação tem como objetivo garantir as condições materiais de existência e sobrevivência do próprio homem.

Da arena de disputas epistemológicas para o campo político, o trabalho se tornou um objeto da batalha discursiva que vem sendo travada em plena pandemia. Para o presidente da república, a defesa do trabalho virou sua plataforma de flexibilização do isolamento social. Quando o presidente diz: as pessoas precisam trabalhar! Ele deixa subentendido que não quer se responsabilizar pela geração de renda para a população que deve ficar em casa. A classe-que-vive-do-trabalho no Brasil, como diria o sociólogo Ricardo Antunes, é heterogênea em sua composição, mas homogênea em sua constituição precarizada. Portanto, ficar em casa para muitos desses trabalhadores significa perder a renda parcial ou totalmente e para outros sentir os efeitos deletérios da precarização.

A classe média composta por professores, servidores públicos, jornalistas e uma diversidade de profissionais que podem ficar em casa, sentem, muitos pela primeira vez, os efeitos contraditórios do trabalho em home office, da educação a distância, das reuniões por chamadas de vídeo, da cobrança por produtividade. A tal da tecnologia que tanto nos ajuda nas interações cotidianas também pode ser carrasca quando se alia a objetivos profanos. É o que experimentam esses trabalhadores, para quem a renda pode até não faltar, mas para os quais sobra a intensificação do trabalho com o aumento das horas trabalhadas ou o aumento da quantidade de atividades realizadas durante a jornada de trabalho.

Para o presidente da república, a defesa do trabalho virou sua plataforma de flexibilização do isolamento social. Quando o presidente diz: as pessoas precisam trabalhar! Ele deixa subentendido que não quer se responsabilizar pela geração de renda para a população que deve ficar em casa.

Em outra frente, há ainda os trabalhadores de plataformas, os famosos entregadores dos aplicativos e motoristas de uber, que continuam ziguezagueando nas ruas e desviando do vírus para garantir o sustento diário. Esses sim conhecem bem a cartilha da precarização, pois se submetem às empresas de plataforma que tentam fazê-los acreditar que estão se liberando do fardo de ser assalariados para se tornarem “homens-empresas”, indivíduos que governam suas vidas como se estivessem gerindo uma empresa. Mas, em vez de autonomia e prosperidade, esses trabalhadores de plataformas encontram sofrimento, servidão e, agora, o risco de contágio por coronavírus. Recentemente, essa situação foi bem exposta pelo programa do humorista Gregório Duvivier, em uma narrativa com toques de ironia e “comunismo” que destaca a crueldade das plataformas.

Frente todas essas circunstâncias, pode não fazer sentido a celebração do primeiro de maio. Mas o que o simbolismo da data nos remete é que não podemos perder de vista a centralidade social do trabalho. Quando as camadas de irrelevância da vida cotidiana começam a cair, o trabalho sobra no terreno da essencialidade. Mesmo que seu sentido remeta hegemonicamente a sofrimento, precarização e crise, sem ele, não há capitalismo nem sociedade. E somente com ele será possível reerguer o mundo em bases menos danosas e mais justas. Nos pós-apocalipse da pandemia, o que nos resta é o trabalho.

Quando as camadas de irrelevância da vida cotidiana começam a cair, o trabalho sobra no terreno da essencialidade. Mesmo que seu sentido remeta hegemonicamente a sofrimento, precarização e crise, sem ele, não há capitalismo nem sociedade.

Os sobreviventes terão, portanto, a árdua tarefa de forjar novos sentidos para o trabalho, desatrelando-o do consumismo, do individualismo e do espírito do capitalismo. E fortalecendo o significado ontológico do trabalho. Na prática, isso implica na assunção de que por meio do trabalho o indivíduo se conecta com a sociedade e que ele não pode se identificar com a empresa, estas que não podem mais lucrar indistintamente sobre a exploração da força de trabalho, força de trabalho humano essa que precisa do retorno das garantias sociais, extintas com as reformas trabalhistas. Garantias que, por sua vez, só serão asseguradas com a organização coletiva dos trabalhadores. Assim, um novo projeto de sociedade, quiçá de humanidade, pode se desenhar tendo como horizonte valores coletivos e solidários – comunistas, dirão muitos.

Afinal, antes mesmo da pandemia, o capitalismo, por meio da exploração, da precarização e da flexibilização do trabalho já vinha nos matando aos poucos. A sobrevivência material e social da humanidade, portanto, depende sim do trabalho e de como vamos defendê-lo e requalificá-lo, sem as firulas discursivas do mundo corporativo, mas com a certeza de que a emancipação do trabalho é a emancipação da vida como um todo.

 

Naiana Rodrigues

Naiana Rodrigues é professora do curso de Jornalismo da UFC, doutoranda em ciências da Comunicação (USP), pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-USP) e do Praxisjor (UFC). Destaca-se: é também fashionista por natureza.

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