Comportamento

Do cotidiano como lugar de resistência

sombrinha

Não tá fácil pra ninguém. Na verdade, nunca esteve, sejamos sinceros. Mas, de uns cinco anos pra cá, piorou bastante. Tudo se mostra extremamente difícil, sem sinalizar possibilidades de entendimento, de acolhida, de otimismo; as palavras parecem ponderadas com antecedência, como se temessem alguma vigilância constante e implacável, e todos os passos são executados com cautela, receosos de enveredar em alguma armadilha fatal. A polarização política que nos acomete, protagonizada por uma extrema direita irascível, fóbica e intolerante, e uma esquerda atordoada e patética, tampouco contribui para nos inspirar confiança. Na verdade, só aprofunda o fosso e a sensação de mal-estar.

Falta disponibilidade para se aproximar, para dialogar e entender; sobra impaciência, proliferam as pretensas verdades, ampliam-se os insultos, renovam-se os tabus, inclusive aqueles que julgávamos ter superado. Do meu lado, já ressabiado com tanta reviravolta e com o triunfo da hipocrisia, sedimenta-se certa desconfiança e também o pessimismo deseja fazer morada. Justo no meu coração, notório pelo seu entusiasmo e humanismo retumbante. Mas não tá fácil pra ninguém, menos ainda para o meu coração…

Onde encontrar brechas? É na esfera privada onde encontro brechas, vislumbro resistências e identifico possibilidades. Pressionado pelos debates nada fecundos nas redes sociais, considero legítimo este refúgio na intimidade para recobrar algum ânimo.

Onde encontrar brechas? Onde identificar possíbilidades? Como construir alguma sociabilidade livre dos interditos e das vigilâncias, norteada pelo signo da esperança e do acolhimento? Este mundo carece de leveza, com urgência urgentíssima. Nada mais. E onde encontrá-la? Não tá fácil, reitero. Talvez seja a hora de renovarmos os engajamentos e de retomarmos as práticas militantes, aquelas que, conduzidas em grandes grupos e em espírito de comunhão, nos inspiram e nos sugerem possibilidades reais de transformação. Mas confesso que, na casa do 40 e com a carcaça já enrijecida, me encontro pouco motivado para enfrentar esta adversidade no corpo-a-corpo, no grito exaltado, ainda que ladeado por centenas de colegas igualmente irmanados. Confio plenamente nas ações coletivas, insisto, mas meu corpo hoje pede contenção, gestos mínimos, o que não se confunde com conformismo…

Portanto, é na esfera privada e nas redes próximas onde encontro brechas, vislumbro resistências e identifico possibilidades. À primeira vista, parece uma solução menor e pouco eficiente diante do quadro grave delineado; alguém poderia aventar também a hipótese de que se trata de uma saída com alcance social restrito. Admito e até visto a carapuça; mas não entendam como um gesto mesquinho, tampouco egoísta. Pressionado pelos debates nada fecundos nas redes sociais e exaurido pelas dificuldades de entendimento nos encontros presenciais, considero legítimo este refúgio na intimidade para reforçar os laços, consolidar os afetos e recobrar algum ânimo. Cada lealdade renovada, entendam, é um estímulo a mais para seguir num mundo onde as tensões parecem se multiplicar e a boa vontade se revela uma quimera.

Não pode ser simples mensagem de whatsapp ou outro aplicativo. É necessário ouvir, se demorar e, se as agitações da vida permitirem, encontrar pessoalmente, tocar, sentir a pulsação e a aprovação do olhar. 

Tenho meus rituais cotidianos e sugiro a cada um que estabeleça os seus. Questão de sobrevivência, insisto. Ligo com regularidade para os amigos; um a um, sondo suas inquietações e partilho meus anseios. Não pode ser simples mensagem de whatsapp ou outro aplicativo. É necessário ouvir, se demorar e, se as agitações da vida permitirem, encontrar pessoalmente, tocar, sentir a pulsação e a aprovação do olhar. Não sou um indivíduo de forte vínculo familiar, mas não deixo estremecer o contato com as crianças que amo – sobrinha e afilhados. Venero meus discos com o entusiasmo de um adolescente e assisto a certos filmes com igual fascínio. E, como não tenho religiões, inventei uma própria. Todos os sábados, compareço ao meu culto matinal: vou à uma feira de orgânicos, onde me demoro a conversar em cada barraca; uma hortaliça aqui, uma fruta acolá, um doce mais a frente, encho a sacola e renovo meu credo. São nestes momentos breves, mas intensos, espécies de epifanias do cotidiano, onde recupero uma ponta de esperança, reencontro algum otimismo.

Laécio Ricardo

Laécio Ricardo é (ou foi) jornalista, é doutor em Multimeios pela Unicamp e professor da UFPE. Apaixonado por gatos, tem convicção de que é cearense, não obstante pistas contrárias, e adora o mar, apesar da epiderme albina.

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