Feminismo

Bela, recatada e do lar e a síntese do atraso

Imagem retirada do incrível Tumblr http://belarecatadaedolar.tumblr.com/

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Muito se falou nos últimos anos sobre uma primavera das mulheres. Em 2015, quando as mobilizações começaram a emergir, nós feministas estávamos nas ruas contra projetos de lei conservadores capitaneados pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Naquela altura, ainda que sob forte ataque, tínhamos uma mulher na Presidência da República. Não que isso significasse muito em termos de políticas públicas, mas tinha uma representatividade simbólica que nenhuma de nós poderia ignorar. De lá para cá, tudo virou do avesso.

Temer conseguiu o feito de repetir algo visto pela última vez na ditadura militar: é o primeiro desde Geisel (1974-1979) que não possui mulheres no primeiro escalão do governo. Será que não havia mulheres competentes para tais funções?

Há 10 meses, desde sua posse interina, Michel Temer tem demarcado a posição de seu governo face às questões de gênero, em especial às desigualdades entre homens e mulheres. Já na formatação da composição ministerial, lá estava a foto de homens (brancos, heterossexuais e velhos). Temer conseguiu o feito de repetir algo visto pela última vez na ditadura militar: é o primeiro desde Geisel (1974-1979) que não possui mulheres no primeiro escalão do governo. Naquele momento, quando interpelado por tal questão, o governo, através do ministro Padilha, disse que o critério do convite não era gênero e sim competência. A emenda saiu pior que o soneto, queria sugerir o ministro que não havia mulheres competentes para tais funções?

Esse episódio deixou explícito, inacreditavelmente, que questões as quais pensamos haver superado, não contentes em voltar à cena, tomaram de conta dela. O machismo explícito na prática política foi o que mais me chamou atenção. Como eu disse antes, não que vivêssemos no país mais progressista em termos de direitos das mulheres, mas um retrocesso tão grande foi para mim algo inimaginável. Imagino que também o foi para muitas feministas. A “nova” realidade era tão anacrônica que fiquei a pensar: onde vamos parar?

O machismo explícito na prática política foi o que mais me chamou atenção. Um retrocesso tão grande foi para mim algo inimaginávelA “nova” realidade era tão anacrônica que fiquei a pensar: onde vamos parar? 

A interinidade passou, mas o governo Temer continuou a reproduzir a mesma perspectiva conservadora e machista em relação às mulheres. Além de assumir uma agenda econômica restritiva, a qual impacta fortemente na vida das mulheres, o governo nomeou para a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) uma ex-deputada que havia sido membro da Frente Parlamentar Evangélica. Fátima Pelaes se colocava abertamente contra o aborto, inclusive, em casos de estupro. Fatidicamente na semana em que a secretária fazia suas declarações sobre o tema, ocorreu o estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro, caso que teve repercussão nacional e gerou profunda indignação nos movimentos feministas e sociedade em geral. Outro aspecto relevante a ser destacado é que, não obstante o perfil conservador de Fátima Pelaes, a SPM passou a ser um órgão vinculado ao Ministério da Justiça, tornando claro que as questões relativas a vidas das mulheres, como a violência a que estamos submetidas, seriam tratadas como questão de polícia exclusivamente.

A perspectiva machista do governo Temer se desdobrou por fim no retorno de um tema que há muito os movimentos que lutam pelos direitos das mulheres têm buscado superar: o primeiro-damismo. O retorno do primeiro-damismo revela as duas faces da moeda conservadora do atual governo: por um lado retira as mulheres do lugar de protagonismo na formulação das políticas públicas, Marcela Temer é uma embaixadora (uma modelo), e por outro desmobiliza os esforços construídos ao longo dos últimos anos em torno dos direitos sociais. Desse modo, é fundamental destacar que a agenda econômica, que retira os direitos sociais, também revela traços de uma agenda conservadora moralmente, que busca voltar a atribuir para as mulheres o domínio do mundo privado.

O retorno do primeiro-damismo revela as duas faces: por um lado retira as mulheres do lugar de protagonismo na formulação das políticas públicas e por outro desmobiliza os esforços dos últimos anos em torno dos direitos sociais. 

A “bela, recatada e do lar” é, portanto, a síntese representativa das mulheres que o governo busca reconstruir. Os discursos de Temer no 8 de março, atribuindo exclusivamente às mulheres o cuidado com a vida privada e a educação dos filhos e também desmerecendo qualquer contribuição no mundo público, afinal na economia o que fazemos de melhor é verificar a alteração nos preços, servem de esteio para que os demais (homens) membros do governo e aliados reforcem essa perspectiva conservadora e machista sobre nós mulheres. Exemplos disso não faltam, destaco três para termos dimensão: a) ministro da saúde afirma que as crianças são obesas por responsabilidade das mães que trabalham fora de casa; b) relator da reforma da previdência afirma que a diferença etária para aposentadoria só poderia ser atribuída para mulheres casadas, que cuidam de filhos e marido; e c) relator da terceirização afirma que “ninguém faz limpeza melhor do que as mulheres” e que quando se avalia o ambiente que o trabalhador se insere deve-se perguntar “como é a mulher dele?”. Tais discursos reatualizam o que há de mais atrasado no repertório machista e conservador acerca das mulheres.

É relevante destacar que as lideranças políticas vinculadas ao governo Temer, incluindo ele próprio, reproduzem tal discursividade machista porque acreditam/concordam e vivenciam isso em suas experiências cotidianas, mas, sobretudo, porque ganham politicamente com esse discurso. O perfil conservador que emergiu no Congresso Nacional não é fruto exclusivamente de alguma distorção no sistema de eleição proporcional, esses parlamentares representam segmentos da sociedade que concordam com a abordagem dada aos temas de gênero, diversidade sexual, entre outros.

Em face desse cenário sombrio, temos que reunirmo-nos, encontrarmo-nos, somarmo-nos, ou como diria Italo Calvino: “procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”. 

O acompanhamento das notícias diariamente causa estarrecimento. Para muitas/os de nós ainda parece difícil elaborar como depois de 6 anos de um mandato da primeira mulher Presidenta da República vejamos o retorno de tamanho conservadorismo, assim como do retrocesso no âmbito das políticas sociais. Como professora e feminista me inquieta ainda mais. Discutir as questões de gênero, mesmo no ensino superior, sempre comportou alguma dose de destreza na abordagem, afinal é importante que todas/os se sintam parte do debate. Atualmente, em tempos de “escola sem partido” rondando as salas de aula, escuto cada dia mais as queixas e receios das/os colegas. Notícias sobre professoras/es processados por discutir gênero e feminismo começam a surgir.

Em face desse cenário sombrio, temos que reunirmo-nos, encontrarmo-nos, somarmo-nos, ou como diria Italo Calvino: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”. Que diante de tudo isso, resistamos juntas/os.

Monalisa Soares

Monalisa Soares é doutora em Sociologia, professora de Ciências Sociais na UECE. Feminista. Viciada em política. Aperreada e ansiosa, mas empolgada com o que vida tem para oferecer.

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Um comentário sobre “Bela, recatada e do lar e a síntese do atraso

  1. Parabéns pelo texto, pelos pontos abordados e pela inquietação que nos deixa ou ler. Realmente é tempos difíceis mas como já disse Gonzaguinha, ” eu boto fé é na rapaziada…” , e você é uma bela representantoe dessa rapaziada que está na luta e não se deixa vercer.

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