Comportamento

Ideologia: eu quero uma pra viver mesmo!

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Todo dia rompemos uma barreira rumo à intolerância. Marielle, presente! Anderson, presente! Quantos não sabemos os rostos? Os nomes? A gente grita, mas é preciso olhar o fundo, ver de onde brota essa violência, olhar as palavras que já escrevemos sobre ela. Para trazer essa questão para um plano mais próximo, lembro do um episódio ocorrido no final de janeiro de 2018. Nessa ocasião, o Benfica, bairro universitário da Capital cearense, mais uma vez foi cenário de manifestações de violência de cunho racista e homofóbica. Um refúgio até bem pouco tempo atrás considerado seguro para estudantes e pessoas gays, lésbicas, trans e bissexuais que se encontravam, aos fins de semana, em uma das pracinhas do bairro para tomar seu bom vinho barato, fumar seu baseado e paquerar, o lugar foi visitado por um grupo de homens brancos e negros também intitulados como “Carecas do Brasil” que diziam panfletar contra as drogas no bairro. O resultado dessa visita foi um jovem negro notadamente homossexual agredido.

O fato rapidamente circulou pelo Facebook. Não só o relato da agressão, mas as fotos e perfis dos carecas foram facilmente revelados pela inteligência coletiva. Na esteira da audiência na rede e das cobranças de justiça, os jornais locais se dedicam a entrevistar os carecas. Uma repórter, inclusive, presenciou, durante a realização da entrevista, uma cena de violência contra eles, ao que o jornal responde com um artigo que finaliza conclamando a oferta de flores para os agressores que naquele momento foram vítimas de violência.

E todos temos uma, seja ela libertária, opressora, religiosa ou laica. A ideologia é inerente ao ser humano e assumir isso e não mascarar a existência de diferentes correntes ideológicas já é um grande passo para o empoderamento político.

Apesar da explanação do acontecimento e de sua cobertura jornalística, me abstenho aqui de realizar uma análise jornalística do fato – em sala de aula, já tenho espaço para fazer isso – mas quero apenas chamar a atenção para a aparição de condutas fascistas em nosso cotidiano, aqui, bem pertinho da gente. São atos e discursos violentos que expressam nada mais, nada menos que ideologias, conjunto de ideias forjadas em um tempo histórico, em uma dada cultura, por um grupo social com vistas ao alcance de uma posição hegemônica na sociedade.

E todos temos uma, seja ela libertária, opressora, religiosa ou laica. A ideologia é inerente ao ser humano e assumir isso e não mascarar a existência de diferentes correntes ideológicas já é um grande passo para o empoderamento político. Quanto mais se nega sua própria filiação ideológica (bem diferente de filiação partidária), mas se fica suscetível ao domínio ideológico de outrem, de uma maioria, de quem está no poder.

Essas reflexões em torno de ideologias e de como estas quando assumem o lugar hegemônico podem se tornar tiranas estão me perturbando intelectualmente desde que reli pela segunda vez a obra 1984, de George Orwell, e terminei a primeira temporada da série The Handmaid’s Tale, inspirada no livro homônimo da escritora Margaret Atwood.

Ambas, com focos diferentes, tratam da ascensão de governos totalitários. O livro de Orwell, com fim bem pessimista (não darei spoilers, calma!), mostra um futuro em que a história é constantemente manipulada. As notícias dos jornais são alteradas com vistas a terem sempre um caráter favorável ao partido. Esse controle da verdade social e discursiva relaciona-se, ao meu ver, com a propagação de fake news na atualidade, sobretudo, em épocas de disputas eleitorais. A noção de verdade se altera em 1984, assim como ela tenta ser alterada nas redes sociais em 2018.

A redução da linguagem a um vocabulário enxuto e livre de ambiguidades, de metáforas, de analogias e paradoxos foi algo que me assustou também no livro de Orwell. A orquestração da nova linguagem com palavras que expressam um conceito apenas e a definição direta de seu antônimo, me move a relacionar esse cerceamento intelectual a episódios recentes de censura de exposições artísticas, vendo a arte como uma linguagem, a mais transgressora delas, diga-se de passagem.

Esse controle da verdade social e discursiva relaciona-se, ao meu ver, com a propagação de fake news na atualidade, sobretudo, em épocas de disputas eleitorais. A noção de verdade se altera em 1984, assim como ela tenta ser alterada nas redes sociais em 2018.

Privar a expressão do pensamento é um dos primeiros artifícios dos governos autoritários. Mas limitar essa expressão em seu nascedouro, pois sem palavras, em uma cultura ainda tipográfica, como afirmou McLuhan, é minar o pensamento em sua gênese, pois sem saber o que dizer, como significar aquilo que se pensa, o que vou enunciar? Resta apenas o sentir. A luta no livro do sistema com o protagonista, que ousou enunciar seu pensamento contrário, mesmo de modo sigiloso, é exatamente em domesticar o sentir.

A domesticação, aliás, é o tema recorrente na série adaptada do livro de Atwood. A premissa central da obra trata de uma revolução ocorrida nos EUA orquestrada por um grupo reacionário que se ampara em preceitos religiosos para governar. A quebra da laicidade da política é outro fator que a ficção enfatiza e que observamos claramente no Congresso brasileiro. A bancada evangélica se organiza e fortalece para disputar mais espaços no pleito de 2018. Vale ressaltar que a mulher, seja para os pastores brasileiros no poder, ou para os homens de Gilead em The Handmaid’s Tale, é ainda a personificação do pecado. Tanto que, na série, uma das primeiras ações impetradas pelo grupo revolucionário é a demissão de todas as mulheres de seus empregos e o fechamento de suas contas bancárias, fazendo-as ficarem dependentes dos homens, sejam maridos, pais, irmãos ou amigos. Ideia que um Bolsonaro da vida não hesitaria em colocar em prática.

Na distopia audiovisual, a mulher fértil (guerras nucleares e empreendimentos médicos deixaram a população infértil no mundo da ficção) deve contribuir para o repovoamento da nova nação sendo uma aia, serva que permanece sob os cuidados de uma família (de homens do alto escalão do governo) até que gere um filho que será cuidado pela família. Vale destacar que a concepção consiste em um ritual realizado no dia fértil da aia, na presença da esposa, em um ato que claramente se caracteriza por um estupro. A dominação do corpo feminino e a legitimação do estupro como parte de um ritual sagrado e político é também assustador e que, em certa medida, é algo com o que vivemos dia após dia em uma sociedade de regime supostamente democrático.

Ser feminista é a ideologia que me salva todos os dias. Mas é aquela que também pode me conduzir a um exílio, à prisão ou à morte caso um regime totalitário se instaure no Brasil. É o risco de assumir um posicionamento perante o mundo. Ficar à deriva não é mais uma opção.

O corpo feminino é explorado pelas indústrias cultural, médica e da beleza e a cultura do estupro se manifesta em músicas, em discursos e em atos violentos praticados por homens que reproduzem o machismo estrutural, inclusive em ambientes considerados intelectualmente elevados como a universidade.

Nunca as distopias, para mim, foram tão próximas do presente como agora. Daí porque escolhi abrir esse texto com um fato real, para chegar nas ficções, mas o qual poderia aparecer na ficção, assim como os fatos da própria ficção podem surgir na realidade. E o que isso nos indica? Que as ideologias reacionárias se fortalecem mundo afora. Que os fascismos se avizinham (uso o plural, pois cada um tem sua particularidade, ora alinhado às religiões, ora ao próprio capital) e que um posicionamento ideológico da nossa parte é necessário, para, como já cantava Cazuza, vivermos.

Ser feminista é a ideologia que me salva todos os dias. Mas é aquela que também pode me conduzir a um exílio, à prisão ou à morte caso um regime totalitário se instaure no Brasil. É o risco de assumir um posicionamento perante o mundo. Ficar à deriva não é mais uma opção, pois lá do outro lado, eles se assumem como carecas, skinheads, evangélicos, de direita. E enquanto negarmos a ideologia por uma suposta neutralidade ou imparcialidade, eles continuarão sendo maioria e dispostos a agredir e aniquilar quem consideram opositores. Não vou entrar no mérito da violência por quem se afirma libertário ou minimamente partidário pelos direitos humanos, mas o confronto está próximo, e a força física, infelizmente, será necessária, mas por enquanto, quero apenas poder sentir com mais afinco o despertar da força ideológica, das ideias, mesmo, pois sem elas, não há motivação nem mobilização.

 

Naiana Rodrigues

Naiana Rodrigues é professora do curso de Jornalismo da UFC, doutoranda em ciências da Comunicação (USP), pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-USP) e do Praxisjor (UFC). Destaca-se: é também fashionista por natureza.

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