Política

A (des) ordem do discurso

Avulsa 5 - discurso

Ilustração: Marcos Paulo Drumond

 

Peço licença a Foucault, e sem querer usar suas palavras em vão, para parafrasear o título de uma de suas obras e mesmo das ideias contidas nela para entender o que presenciamos neste dia 17 de abril de 2016: o dia do “sim” ao Impeacheamant da Presidenta Dilma Roussef.

Foucault, nesta referida obra, sabiamente, afirma que a sociedade não luta pelos objetos dos quais tratam os discursos, ela luta pelo poder de discursar. Essa afirmação não poderia ser melhor exemplificada do que com as cerca de 10 horas de transmissão da votação na Câmara dos Deputados Federais. Foram quase 3.600 minutos de falas inflamadas, contidas, razoáveis, absurdas, mas que dificilmente se preocupavam em versar sobre o objeto do discurso: o crime da presidenta.

Foram cerca de 10h de transmissão da votação na Câmara com quase 3.600 minutos de falas inflamadas, contidas, razoáveis, absurdas, mas que dificilmente se preocupavam em versar sobre o objeto do discurso: o crime da presidenta.

Ora, o que é uma pedalada fiscal – nome também discursivamente criado pela mídia para resumir a questão – frente aos meus filhos, minha mãe, da minha esposa, meus amigos, a Deus, e pasmem, ao povo (essa figura amorfa e acéfala, para muitos dos protagonistas desta noite).

O objeto sobre o qual os discursos deveriam versar foi completamente obliterado pelo que se mostrou mais urgente discutir por quem, muitas vezes, teve, pela primeira vez, o poder do discurso. Sim, pois sabemos que nem todos os 504 deputados ali presentes discursam na Tribuna todos os dias. Muitos dela nunca haviam chegado perto – aposto – e quando a ela se achegaram não resistiram e falaram de si mesmos.

Engana-se quem pensa que esse negócio de falar de si, de exposição, de narrativas autobiográficas é coisa apenas de redes sociais. Em todo e qualquer espaço, quando não somos capazes de enunciar sobre algo exterior a nós, sobre a realidade de modo geral, nos voltamos para nós mesmos, seja para gerar empatia no outro, seja pela completa falta de o que falar para além de nossas próprias experiências. Sim, somos narcisos discursivos. Mas isso é outra história.

Para além do narcisismo expostos pelos 367 deputados que votaram a favor do sim, eles nos revelaram, por meio da enunciação de palavras como “família” e “Deus”, um discurso que se ergue para toda uma geração acostumada ao campo semântico da política de esquerda, o discurso do conservadorismo.

A pirâmide discursiva do poder, que tem o povo na base, a família no corpo e Deus, no cume, significa reforçar um discurso de conservação da ordem e da tradição que muitos movimentos revolucionários, desde o Iluminismo, combatem.

A família brasileira, a família de bem ali referenciada, trata-se, nada mais, nada menos, da família clássica, heteronormativa, que emerge com a burguesia e sua necessidade de ordenamento financeiro, comercial e longe de ser por uma demanda afetiva, isso é invenção do romantismo.

O Deus ali evocado não é primitivo, apócrifo, ancestral, é o Deus moldado por outro forte discurso, o das Igrejas, sejam elas católicas ou pentecostais. O Deus institucionalizado, cuja representação terrena possui um poder incontestável, e o Deus medieval mesmo, que é intolerante e queima aqueles que contestam sua ordem. Daí porque o deputado Bolsonaro, um filho temente a Deus, exorta em seu discurso um torturador da época da Ditadura Militar no Brasil. Não é de se admirar, afinal, o Deus para o qual ele fala em nome é impiedoso mesmo e não tolera dissidências.

Calma aos que acreditam em uma divindade bondosa, e cheia de amor pra dar. Esse Deus, também inventado recentemente, não coaduna com o poder, pois ele é, inclusive, um deus com ares comunistas, já que ele pensa que é “dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado”. Então, continuem acreditando nesse Deus, que não se corporifica no Congresso, na representação discursiva de homens que lançam mão de seu nome achando que você, cristão, irá fundamentá-lo.

E para fechar a tríade de nomes enunciados na noite do dia 17 de abril, temos o povo. Ah, o povo, por ele, mata-se e morre. O povo que precisa de líderes, de esclarecimento, o povo que é arredio, selvagem, e que não tem condições de escolher o próprio presidente do País, pois precisa que um Congresso altere essa decisão impedindo a presidenta de continuar sua gestão. É esse o povo ao qual os deputados fizeram referência.

É o discurso de legitimidade de instituições sociais construídas nos primórdios da modernidade e que estão à beira do esfacelamento na contemporaneidade, pois esta, não fica presa aos contornos da Família, de Deus e do Povo.

Encerrada a pirâmide discursiva do poder, que tem o povo na base, a família no corpo e Deus, no cume, vamos ao que ela significa. Ela reforça um discurso de conservação da ordem e da tradição que muitos movimentos revolucionários, desde o Iluminismo, combatem. É o discurso de legitimidade de instituições sociais construídas ainda nos primórdios da modernidade e que estão à beira do esfacelamento na contemporaneidade, pois esta, com sua complexidade, não consegue ficar presa aos contornos da Família, de Deus e do Povo.

E isso graças ao levante discursivo dos desviantes, daqueles que não se encaixam nessa tríade, como as mulheres (pois a família tradicional é patriarcal), os homossexuais, transgêneros, bissexuais e travestis; os negros (a família também é branca, assim como Deus) e os trabalhadores, que agora são tão esclarecidos quanto as elites, pois também ocupam os bancos universitários.

Todo esse cenário é assustador para quem pensa, erroneamente, que a realidade não deve mudar. E, por mais que a mudança tenha sido palavra proferida por muitos dos votantes do sim, ela não significa ruptura, mas mudança pela restauração de uma ordem política, social e cultural em que o poder de discursar, este que também é o poder de existir – já diriam Foucault e Bourdieu, permanece restrito aos homens brancos, de bem, tementes a Deus e porta-vozes legítimos do Povo.

Mas se estes mesmos 342 deputados foram levados a votar pelo medo de perder as instituições que tanto os protegem, imaginem o que o mesmo medo não irá fazer aos cerca de 54 milhões de brasileiros que, em tese, eram a favor do não? Agora é a hora de expandir os discursos de quem teme pelo conservadorismo. Na falta da tribuna, do púlpito, são nas ruas que esses discursos dos numericamente majoritários, mas simbolicamente minoritários, devem ecoar.

Se vimos um discurso em que os iguais se protegem, a reação é exatamente a aliança discursiva em prol das diferenças.

Se vimos no Congresso a corporificação de um discurso em que os iguais se protegem, a reação é exatamente a aliança discursiva em prol das diferenças, afinal, democracia de elite é autoritarismo. Então, a mudança do #nãovaitergolpe para o #vaiterluta é uma expressão de que sim continuamos na disputa pelo poder do discurso, pelo poder de existir.

E esse texto foi a forma que encontrei de vencer o desânimo e o pessimismo. Fui salva pelo discurso!

Naiana Rodrigues

Naiana Rodrigues é professora do curso de Jornalismo da UFC, doutoranda em ciências da Comunicação (USP), pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-USP) e do Praxisjor (UFC). Destaca-se: é também fashionista por natureza.

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