Viagem

A saudade e o encontro marcado

Minas1

Todo ser humano tem alguma ambição na vida. A minha sempre foi muito simples: ir. Sonhava em morar em outra cidade, conhecer pessoas novas, espantar-me com costumes diferentes. Veio a faculdade, um curso aqui, uma acomodação acolá e o plano foi ficando de lado. A vida cobrou. Aquele emprego – e os que mais surgiam – deixou de ser interessante, os cursos ofertados já não eram tão atrativos e a cidade, apesar de amada, não abraça como antes.

Depois dos 30, coloquei no matulão uma profissão, muita vontade de aprender e cara de pau sobrando. Quem quer sair de casa sem uma bolsa de estudos ou um parente mecenas que banque uma aventura precisa desses três itens básicos. E eu tinha todos eles. Não foi presente, roubei do tempo. Parti.

Belo Horizonte tinha tudo que eu precisava: uma especialização atraente, um custo de vida possível para a grana economizada, amigos morando na cidade ou planejando mudar-se para ela, uma comida boa pra danar, um samba do bom e muitos bares por metro quadrado. “Pronto!”

Quem quer sair de casa sem uma bolsa de estudos ou um parente mecenas que banque uma aventura precisa desses três itens básicos. E eu tinha todos eles. Não foi presente, roubei do tempo. Parti. 

Dezembro chegou com a mudança, oportunidade de começar de fato um ano-novo. Aí vida te cobra outra vez. O preço da conta varia. Deixar o carro de lado, por exemplo, foi muito barato. Aliás, foi quase um investimento. Andar pelo Centro à noite sem aquele medo de ser abordado de forma violenta é uma das sensações mais gostosas. Precisava de um ambiente mais democrático para morar ou algo parecido com isso.

No entanto, nem tudo é barato. Saciar vontade de ir embora é ter de administrar a saudade o tempo todo. É se questionar se ainda restou pedaço de raiz, depois do arrancar-se, que permita uma nova florada. Como bem registrou o pesquisador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, “a saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços queridos do seu ser, dos territórios que construiu para si” (A invenção do Nordeste e outras artes).

Mudar de cidade é estar longe do sobrinho que chegou da escola todo pintado de índio; é não ter mais aquela marmita que a mãe sempre lhe entregava ao fim de uma visita (“depois tu traz meu depósito”); é não receber mais aquele convite para tomar uma cerveja em plena terça-feira (mesmo que a recusa fosse uma resposta-padrão); é não estar perto do mar.

Mudar de cidade é deparar- se com o preconceito contra aqueles que nasceram em uma região pobre como a minha. É estranhar o fato de não ser convidado no primeiro instante para tomar um bom café coado (com sorte, no terceiro ou no quarto instante). Esse custo – altíssimo para mim – rendeu-me muitas lágrimas e arranhões nos discos do Belchior e do Fagner.

Como li dia desses, na internet, ir para longe de casa por escolha envolve a sensação de estar por querer estar, mesmo que isso cause um certo sofrimento. É saber que existe algum propósito ter ido. Os muros invisíveis que nós mesmos construímos começam a ruir e o “realizar” só começa a fazer sentido quando permitimos que o novo lugar tome conta da gente.

Ir para longe de casa por escolha envolve a sensação de estar por querer estar, mesmo que isso cause um certo sofrimento. Os muros invisíveis que nós mesmos construímos começam a ruir e o “realizar” só começa a fazer sentido quando permitimos que o novo lugar tome conta da gente.

É possível sentir isso nos momentos mais simples do dia a dia. A gente passa a se sentir fazendo parte da nova morada quando é reconhecido no meio da rua, numa tarde qualquer, pelo garçom do seu bar do coração; por ter trocado cinco minutos de prosa com o cara que te vende queijo toda semana; por ter conquistado algumas calorias com aquele bolo de cenoura com chocolate do Mercado Central que não existe em nenhum outro lugar do mundo; por ter sempre por perto aquele torresmo de qualidade e um feijão tropeiro de responsa.

Essas pequenas coisas começam a te afagar o coração como um pedido de calma e paciência para os momentos de aperreio e de saudade. As conquistas – a confiança para tomar o café coado, o emprego novo que aparece, o aprender a tratar com a ignorância de alguns preconceituosos e os avanços acadêmicos – passam a te fazer escolher um repertório mais animado nos vinis. “Asa partida e dor” dá lugar a “você me dá prazer, você me dá cartaz”.

Com o tempo, a gente vai entendendo que sempre é possível voltar quando esse desejo for maior que o de ir. Ter para onde voltar é a segurança para ir cada vez mais longe, numa espécie de paradoxo que enaltece o prazer inebriante do “seguir”. Sinto, porém, que fiz um pacto parecido com o feito pelos personagens do mineiro Fernando Sabino:

“Últimos dias de aula. Eduardo, Mauro e Eugênio (um rapaz franzino, pálido e de olhar vivo, que viera transferido de outro colégio) conversavam no corredor sobre a vida que iam enfrentar lá fora, o destino que os esperava. Resolveram, os três, assumir um compromisso: qualquer que fosse o caminho que eles tomassem, vinte anos depois voltariam a reunir-se ali, naquele lugar.

- Vinte não: quinze – objetou Eduardo. – Vou morrer antes disso.

- Então quinze – concordaram os outros dois, sem se importar que ele morresse. Onde estivessem, acontecesse o que acontecesse.

- Neste mesmo lugar.

- Mesmo que tenham derrubado o Ginásio, nos encontraremos no lugar onde havia o Ginásio.

Marcaram a data certa, dia e hora, cada qual escreveu num papelzinho.

- Quem faltar, é porque morreu.

- Ou então está preso…

- Só não pode esquecer…

Calaram-se, e ficaram pensando…

- Que será de nós? – perguntou um deles, distraído.” (O Encontro Marcado)

 

 

 

 

 

 

 

Daniel Sampaio

Daniel Sampaio é jornalista, integrante do grupo Opinião Pública da UFMG, desbravador de botecos mineiros e tio do Isaac.

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