Todos aguardamos pacientemente o momento de expor com raiva canina os erros cometidos por outros nas redes sociais
Depois que li “So You’ve Been Publicly Shamed”, livro do jornalista norte-americano Jon Ronson, tive mais certeza de que estamos mesmo nos tornando linchadores virtuais. O texto leve de Ronson, que investiga as particularidades da vergonha na era digital, deixa evidente a insensatez do justiçamento, que, para mim, é a mais abjeta forma de vingança.
A imolação dos pecadores segue um mesmo ritual macabro, com a exceção de dois ou três nomes próprios: alguém, por inocência ou má-fé, aperta o botão enviar com um comentário considerado desrespeitoso demais para ser uma mera piada de humor negro, e quase instantaneamente uma horda ensandecida e empunhando tochas arromba a porta do cômodo, arranca o sujeito da frente do computador e o leva para uma fogueira armada no meio da rua, onde geralmente a madeira já crepita; a figura perde o emprego, algumas amizades e às vezes até a segurança de sair na rua. Em poucos dias, o tuiteiro passa de companheiro descolado a condenado sem remissão, sem direito a defesa e, pior, obrigado a rever o calvário inteiro ao clique de um mouse.
Em poucos dias, o tuiteiro passa de companheiro descolado a condenado sem remissão, sem direito a defesa e, pior, obrigado a rever o calvário inteiro ao clique de um mouse.
Ronson conta a história da diretora de comunicação Justine Sacco, que, pouco antes de entrar num voo em direção à África do Sul, em 2013, onde ia visitar a família, teve a infelicidade de elaborar o seguinte tuíte: “Partindo para a África. Espero não pegar Aids. Brincadeirinha. Sou branca!”. A internet explodiu; Justine, depois, é claro, morreu metaforicamente. Perdeu o emprego e passou um bom tempo trancafiada em casa. Acabou indo fazer trabalho voluntário na mesmíssima África que pichou na internet.
Outro caso, de 2012, é o da professorinha de escola infantil, Lindsey Stone, que, diante da placa “Silence and Respect”, do Arlington National Cemetery, um cemitério militar em homenagem aos mortos nas guerras americanas, fingiu que gritava enquanto levantava o dedo médio numa foto postada no Facebook. Já havia feito outras peripécias do gênero sem maiores consequências, como simular que fumava num lugar proibido. Era uma brincadeira recorrente que compartilhava com um amigo. De críticas ao peso dela até ameaças de morte, Stone recebeu de tudo via comentário.
Cada uma à sua maneira, Sacco e Stone disseram a Ronson que foram mal interpretadas: Sacco pensou que fazia uma crítica, em verdade, ao privilégio e à desigualdade; Stone visou muito mais a mensagem simples da placa do que o subtexto histórico e militar que estava contido lá. Mas as justificativas delas pouco interessam. Não porque seus erros sejam injustificáveis, mas porque, mesmo que esses erros não fossem sob qualquer hipótese justificáveis, ainda assim não acredito que amarrar alguém num poste e açoitá-lo até a morte seja um modo saudável e humano de punir erros e desvios. É fisicamente ruim na vida real; é desumano também na internet com a capacidade de infinita reprodutibilidade —sobre isso, vale a pena ler o capítulo em que Ronson tenta ajudar Stone a se livrar das inúmeras referências negativas a seu nome e percebe que o mecanismo de pesquisa do Google é inteligente demais para deixar cair no esquecimento um fato que pode trazer ainda tantos cliques.
Pois, enquanto nos casos Sacco e Stone há uma suposta possibilidade de que as suas atitudes estejam mergulhadas de fato numa zona cinzenta (pondo-as no grupo das pessoas ‘boas’ em ações babacas), um caso brasileiro não deixa dúvidas de que a autora saiu, de propósito, vestida para matar, mas, apesar disso, não mereceu o que fizemos com ela.
Não acredito que amarrar alguém num poste e açoitá-lo até a morte seja um modo saudável e humano de punir erros e desvios. É fisicamente ruim na vida real; é desumano também na internet com a capacidade de infinita reprodutibilidade.
Era outubro de 2010, e a presidente Dilma Rousseff tinha acabado de ganhar as eleições. Eu me lembro muito bem, porque estive particularmente envolvido naquele período eleitoral —a verdade é que a gente tem muito tempo livre na época de faculdade. Quando saiu o resultado, dava para ouvir uma saraiva de balas de 140 caracteres pela janela. A paulistana Mayara Petruso, por exemplo, estava fula da vida: “Nordestisto (sic) não é gente, faça um favor a Sp, mate um nordestino afogado!”
Do sétimo andar de um apartamento no bairro de Fátima, em Fortaleza, eu trucidei Mayara no Twitter. Dizer que ela ia ser presa foi o mínimo. Outros me acompanharam. É até bem possível que você também tenha se juntado a mim nesse belo exemplo de linchamento virtual: @mayarapetruso era estagiária num escritório de advocacia, que a dispensou pouco depois daquele domingo; ela entrou numa espécie de crise de pânico, não saindo mais à rua, não indo à faculdade, que abandonou em seguida, e tendo crises de choro, segundo os familiares contaram à imprensa; o Ministério Público abriu investigação contra ela, e a conta do Twitter apagada em desespero não impediu, e a propósito não impede hoje, de as provas do crime estarem todas vivas, até com os deslizes de digitação. Para nosso deleite, o caso ainda rendeu matérias no jornal “Daily Telegraph”, na agência “AP” e na emissora “Fox News”. Tudo com a foto de Mayara.
Não sei ao certo quem foi o primeiro a puxar os cabelos dela e arremessar a moça no fogo, mas confesso que, na época, marejei os olhos por aquela criminosa estar ali derretendo e esguichando de dor bem pertinho de nós. Mayara entronou-se, para mim, como o primeiro espécime a ser identificado, julgado e condenado em poucos dias, numa celeridade que o judiciário brasileiro jamais concebeu.
Em 2012, a Justiça oficializou o que nós já tínhamos decretado dois anos antes: Mayara acabou sentenciada a um ano, cinco meses e quinze dias de prisão, uma pena abaixo do mínimo legal e convertida em prestação de serviços. A decisão está disponível online, e a juíza Monica Camargo optou por esse caminho pela “punição moral de fato a que Mayara foi submetida” e porque as consequências da infração “também atingiram a própria acusada de forma tão grave”.
Mayara entronou-se como o primeiro espécime a ser identificado, julgado e condenado em poucos dias, numa celeridade que o judiciário brasileiro jamais concebeu.
Pode parecer erroneamente que estou defendo um relaxamento do castigo em comparação ao crime e que, afinal, tudo passasse incólume. Muito ao contrário, acho que ela e todos os outros que cometeram xenofobia agora e naquela época, em 2014, na reeleição da Dilma, devem ser identificados, julgados e condenados (culpados, se possível). Como nordestino, me ofendo com cada comentário desse gênero que leio ou escuto na rua. Mas, sem querer ser legalista demais ou em outras palavras realista de menos, não consigo vislumbrar outra forma de punir pessoas que cometeram crimes senão pelo mecanismo judicial.
O que fizemos lá não foi isso. Ou melhor, não apenas isso. Hackearam até o (saudoso) Orkut da estudante. Reproduziram o tuíte dela em prints que ficaram fazendo voltas ad aeternum pela troca de bits na rede. Qualquer pesquisa rápida no Google retorna uma imensidão de páginas contando a história —essa é uma delas, feliz ou infelizmente. Nós destruímos não só a vida profissional e emocional de Mayara, mas quem sabe até a vida amorosa. Imagine pesquisar o nome da paquera e saber que ela vomitou o mais sórdido e pútrido preconceito. Em tempos de Tinder, todos nós damos um block, na vida real ou no Facebook, e passamos para a próxima. Mesmo que a pessoa, cinco anos depois, seja completamente outra. Eu e você mudamos de 2010 para cá; ela, veja só, é muito provável que também tenha. A diferença é que ela está marcada para sempre e nós, não.
Esse tipo de justiçamento ganhou força no Brasil com a visibilidade inevitável que ações do gênero começaram a ter na internet americana. A caça às bruxas se tornou bem mais refinado quando entraram no jogo movimentos da sociedade (de direita e de esquerda) que defendiam ideias bem claras e perceberam a necessidade de vencer a partida eliminando o adversário discursivamente. Não à toa há um rosário de termos em inglês, traduzidos ou não, que são uma espécie de receituário para a ação. Acontece que, se antes as Mayaras Petrusos abundavam e eram facilmente decapitadas, agora todo usuário de rede social sabe que se vive num permanente tabuleiro da moral, em que todos, rigorosamente todos podem ser defenestrados desde que se pise um pouco fora da casa. Isso tornou o jogo mais complicado e também internamente mais mortal. O inimigo pode estar em qualquer lugar.
Esse é exatamente o problema. Se todos somos potenciais inimigos, seres falíveis esperando o momento de uma escorregadinha para sermos abatidos, então o julgamento se torna uma fatalidade inevitável, ou seja, muito mais uma confirmação de que sempre fomos culpados —racistas, misóginos, tucanos etc.— do que uma análise que pesa contextos, variações do ambiente ou ainda que se autoavalie como incapaz de fazer mais julgamentos ponderados senão por meio jurídico.
Se todos somos potenciais inimigos, seres falíveis esperando o momento de uma escorregadinha para sermos abatidos, então o julgamento se torna uma fatalidade inevitável, ou seja, muito mais uma confirmação de que sempre fomos culpados —racistas, misóginos, tucanos etc.
Durante o século XVI, se a bruxa praguejasse contra os inquisidores de Deus enquanto virava cinzas na fogueira era atestado de culpa; se se calasse, era confirmação de que sua mágica a impedia até de sentir dor, logo, culpadíssima; se a palha demorasse a pegar fogo, era sinal claro de que os considerados poderes atrapalhavam até a execução da pena, então, culpadérrima. O cheiro da madeira queimada em 1567 sob os pés de bruxas rescende nos tuítes do século XXI.
E assim como naquele período tenebroso da história, nossa fogueira 2.0, com entrada USB e 30 Mbps, em farta medida cresce cada vez mais alta, porque pessoas que confiamos e que compartilham de nossos valores reproduzem irrefletidamente o mesmo manual de horror medieval nas redes sociais com outros que ainda não somos nós.
Vou citar um pensador a contragosto. O psicólogo social e físico amador francês Gustave Le Bon (1841-1931) —também misógino e racista, mas isso é outra história— tem uma definição hiperbólica sobre a mentalidade das pessoas em meio à multidão. No livro best-seller “La psychologie des foules”, lançado em 1895, ele escreve (apud Ronson): “Pelo simples fato de se fazer parte de uma massa organizada, um homem decai vários degraus na escada da civilização. Isolado, pode até ser um indivíduo refinado; na multidão, é um bárbaro —isto é, uma criatura que age pelo instinto (…) Na multidão, todo sentimento e ato são contagiosos.”
É um exagero. Trata-se da escrita de um sujeito influenciado pela ciência que se fazia em fins do século XIX, por isso minha contrariedade inicial, mas aponta para um cerne que, a despeito do que acreditava o autor em outras questões, é verdadeiro. Deixando de lado camadas e camadas de glacé positivista, Le Bon abriu margem para se entender que a manada, essa sem rosto mas cheia de vontades, mesmo se constituída de pessoas que compartilhem um ideal nobre, pode descambar para a barbárie, caso seus membros não se mantenham em contínuo questionamento do que estão fazendo e, em especial, de como estão fazendo.
A cobra da moralidade morde o próprio rabo um dia, e eu não quero estar nessa extremidade quando isso eventualmente acontecer. Por que, então, deveria contribuir quando o assado no espeto é o outro?
Participei de outros linchamentos depois daquele de Mayara. O último foi o do professor de literatura Idelber Avelar. Li, com renovado prazer, tudo o que se havia publicado a respeito na blogosfera brasileira. A certa altura, um escritor, meu amigo no Facebook, divulgou um comentário maldoso com um link para o Tumblr que reunia conversas privadas de Avelar com as mulheres que o acusavam de machismo e abuso psicológico. No mural de comentários, disparei: “Não entendo como alguém que se mostra publicamente defensor das minorias pode ter tão pouca empatia com mulheres e maridos traídos”. Não pude me sentir mais estranho. “Uma coisa não tem a ver com a outra. Sexualidade e vida pública são esferas separadas”, me respondeu outro internauta. Foi o suficiente para apagar o que havia escrito.
Percebi que estava mais uma vez colaborando para aniquilar um sujeito que não conheço e sobre o qual não tenho meios materiais nem morais para julgar. A bem da verdade, ninguém tem, exceto os poucos envolvidos na querela. A cobra da moralidade morde o próprio rabo um dia, e eu não quero estar nessa extremidade quando isso eventualmente acontecer. Por que, então, deveria contribuir quando o assado no espeto é o outro?
Enquanto no pátio da internet as pessoas se divertem levando muitos à forca, baseando-se numa régua moral estreitíssima, tenho preferido ir para uma rua ou viela onde o rebuliço esteja em outro patamar, menos passional, mais racional e ponderado, o que ainda é possível. Caso contrário, é melhor voltar para casa e assistir ao vídeo das preguiças-bebês curtindo um banho de banheira.
Alan Santiago
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