Pop

O pop também sofre

Os fãs de Madonna sabem que ela costumava levar uns sopapos do primeiro marido, o ator Sean Penn, e que o casamento acabou numa delegacia. Não é novidade que Whitney Houston, em companhia do marido, promoveu várias festinhas regadas a cocaína e whisky. A imprensa bisbilhotou, noticiou e fotografou tudo nos mínimos detalhes. Algumas outras cantoras, no entanto, parecem querer ter um relacionamento mais franco com seus fãs. Antes que os jornalistas publiquem seus problemas, elas mesmas contam tudo, escancaram mesmo através de suas composições. Além de cantoras, são letristas. Foi assim que Fiona Apple relatou um estupro sofrido aos 12 anos, Tori Amos expôs um aborto traumático e Alanis Morissette se vingou do namorado. 

Mulheres que expressam suas angústias através da música sempre existiram. Da diva Billie Holiday à brasileira Maysa, cujos olhos foram definidos como dois oceanos não pacíficos por Nelson Rodrigues, muitas mulheres foram capazes de cantar a própria alma de modo dilacerante, rasgado. As canções refletem o estado de espírito de suas intérpretes, tanto que os raros momentos de alegria também podem ser encontrados na audição de seus álbuns.

PJ Harvey e suas maravilhosas estórias

Singular talvez fosse um bom adjetivo para definir Polly Jean Harvey. Entre tantas cantoras de sua geração, ela se destaca por ter um estilo próprio, triste, raivoso, ousado. Se a descrição parece a de mais uma rebelde sem causa, igual a tantas outras “clonadas” de Alanis Morissette, deixe para lá. Ela não é nem um pouco poser. Escute o mais recente Stories from the city, stories from the sea e entenda.

Sem ser pretensiosa, a cantora britânica prova que existe vida inteligente no rock feminino. Passeando com desenvoltura por temas diversos e aparentemente distintos como religião, sexualidade e violência, ela confere-lhes uma amálgama mostrando o quanto estão intrinsecamente unidos, tudo em letras fortes, marcantes e muitas vezes dramatizadas. Autêntica, ela não costuma se render a modismos. A atual febre de música eletrônica, à qual muitos artistas já se renderam, não fez sua cabeça. Ela continua fazendo rock básico e cru. Sem frescuras, apenas guitarra, baixo e bateria. Simples e eficaz.

Mesmo quando é pop e romântica, faz isso de modo que não seja pegajoso ou forçado. Good Fortune poderia tocar em qualquer rádio por mais comercial que fosse, e isso não é nenhum demérito. A Place Called Home segue o mesmo caminho, mostrando que a cantora está mais feliz nesse novo trabalho. Mas é inegável que ela se sai bem melhor quando segue a veia roqueira, como em Big Exit, ou na mais pesada Kamikase, em que ela se arrisca num quase punk.

Se sozinha PJ já dá conta do recado, imagine com a luxuosa ajuda de Thom Yorke, do Radiohead, nos vocais. Ele empresta toda a sua melancolia a One Line, Beautiful Feeling e a maravilhosa This Mess We’re In. PJ Harvey deixa claro nesse CD que Yorke não apenas dividiu o microfone, mas também é uma forte influência musical. Beautiful Feeling e, principalmente, The Whores Hustle and the Hustlers Whore têm um gostinho bem radioheadiano.

No leque sonoro da cantora, até o folk encontra um espaço tímido em You Said Something. Talvez para lembrar as estórias de seu pequeno vilarejo à beira-mar, Dorset, em contraponto ao seu novo lar, a metrópole Nova York. O título remete às estórias vividas nos dois lugares. A nova cidade parece ter feito bem a ela; esse trabalho é bem menos cinza e pesado do que o anterior, Is the Desire?, o melhor dela até hoje.

Em meio à profusão de insossos chicletinhos pop na cola de Britney Spears e dos malabarismos vocais de Mariah Carey e Whitney Houston, PJ Harvey se destaca como uma das melhores cantoras e compositoras em atividade. Sem medo de se expor e de inovar, assim é Polly Jean Harvey.

 

Gerações e gerações passaram seguindo direitinho a cartilha: Marianne Fairthfull, Patti Smith, Joni Mitchell e muitas outras. Mas nunca se viu tanta autoexposição quanto atualmente. Nos últimos anos, o mundo pop viu uma profusão de mulheres que transformaram suas músicas em confissões. É uma geração na faixa dos vinte, trinta anos, que faz da caneta mais uma sessão psiquiátrica. Obviamente inspiradas nas musas do passado, cantoras como PJ Harvey, Fiona Apple, Tori Amos e Aimee Mann fazem sucesso com a imagem de mulheres que sofrem e, com isso, encontram identificação imediata com o público fiel. Quantas pessoas já não encontraram em uma ou várias músicas um consolo para o próprio sofrimento? É o que se pode chamar de música feita para chorar, não necessariamente por dores de cotovelo, embora seja bem fácil encontrá-las também.

O que une essas cantoras, além da temática de suas músicas, é o modo como se expressam. Ao ouvi-las, muito provavelmente sabe-se que se tratam de composições feitas por mulheres. Experiências pessoais e assuntos polêmicos fazem parte de letras que contestam a religião, relatam masturbações e atacam o mundo. Cada qual a sua maneira traz um enfoque feminino e direto a assuntos antes camuflados. Não pense que se resumem a canções de amor. Muitas delas são, é verdade, mas não apenas isso. Vamos a elas, então…

As cantoras mais confessionais da atualidade

Tori Amos

Tori Amos: a vida dessa cantora americana não foi fácil. No início da adolescência, foi expulsa do conservatório onde estudava piano por não se adequar às regras e querer improvisar. Passou a se apresentar em pequenos bares gays, até se mudar para Los Angeles, onde, em 1988, gravou o primeiro disco. O fracasso do álbum aliado a um estupro sofrido por um fã a quem dava carona após um show a fizeram entrar numa crise de depressão. O segundo disco, intitulado Little Earthquake, veio recheado de temas fálicos e a faixa Me and Gun, narra o acontecimento traumático. O sucesso veio no trabalho seguinte, Under de Pink, falando de religião, patriarcado e masturbação, que vendeu mais de um milhão de cópias. Em 1998, outro CD bem confessional, dedicado ao aborto espontâneo do ano anterior. Na música Spark, ela diz que ela se sentia “com as mãos amarradas e os olhos vendados, pois via aquela criança morta e nada podia fazer”. De lá para cá, sua vida parece ter melhorado bastante: casou-se com o produtor musical Mark Hawley e, em 2000, nasceu a primeira filha do casal. Álbum essencial: Little Earthquake

Fiona Apple

Fiona Apple: no álbum Tidal, além de Sullen Girl, em que ela narra metaforicamente seu estupro aos 12 anos de idade (“estava velejando no mar tranquilo, mas fui traída por ele e lançada à praia, como uma concha vazia, depois que alguém me roubou a pérola”), tem ainda Shadowboxer, sobre o embate entre desejo e vulnerabilidade que resulta em amor perdido e arremedo de amizade. A dificuldade em encarar relacionamentos foi tema ainda de várias músicas do segundo CD, When the pawn…, com On the bound e To your love. Hoje, Fiona mantém um relacionamento estável com o cineasta Paul Thomas Anderson e declara-se bastante feliz. Será o seu próximo CD mais alegre ou os traumas do passado ainda a atormentam? Álbum essencial: Tidal

Aimee Mann: apesar da experiência à frente da banda ‘Til Tuesday, ela era desprezada pelas grandes gravadoras por ser considerada pouco comercial. Meiguinha como ela só, resistia à depressão, tendo esperança numa virada. A grande chance veio com a gravação da trilha sonora de Magnolia (na realidade, uma compilação de sua carreira solo), que estourou em todo o mundo. O diretor Paul Thomas Anderson costuma dizer em suas entrevistas que o filme jamais poderia ter sido realizado sem as canções de Aimee, que funcionaram como ponto de partida para o roteiro. Melancolia e esperança são a tônica de seu trabalho. No mais recente, Bachelor nº 2, lançado pelo seu próprio selo independente, SuperEgo, “alfineta” aqueles que a desprezaram: “O que começou com tanta animação, agora eu termino com alívio”. Álbum essencial: Magnolia, trilha do filme homônimo.

PJ Harvey: caso raro de cantora que conseguiu desvencilhar sua imagem do rastro do namorado famoso. Claro que ele influenciou seu trabalho, afinal era ninguém mais, ninguém menos que Nick Cave. E é praticamente impossível falar de músicas melancólicas sem citar seu nome. O quinto álbum, Is the Desire? mostra músicas que “são a cara” de alguém que o namorasse. Mas PJ sempre teve estilo próprio, com canções sobre problemas femininos e que vão bem além dos clichês do gênero. Nesse trabalho, o seu melhor, ela encarna 12 diferentes personagens. É como se cada música fosse uma página de diário arrancada de diferentes mulheres que vão fundo aos extremos de ódio, vingança e satisfação física. Agora, com namorado novo e morando em Nova York, ela reapareceu com Stories from the city, stories from the sea, mostrando seu novo momento. Álbum essencial: Is the Desire?

Alanis Morissette: a típica cantora que fez sucesso moldando um estilo próprio da ousadia ao mainstream. Sua estreia foi impactante, com composições intensas do álbum Jagged Little Pill. Em You Oughta Know, ela confessa ter feito muito sexo oral no cinema com o ex-namorado, a quem, ironicamente, deseja felicidades. Já em Supposed Former Infatuation Junkie, na faixa Unsent, ela dá nome aos amores do passado. A canadense, no entanto, se deixou engolir pela padronização e fez músicas quase insuportáveis, como a chatíssima Thank You (abstenho-me de comentar o clip, um dos piores já produzidos) e a baba mais insossa dos últimos tempos, There I would be good. Álbum essencial: Jagged Little Pill

Jewel

Jewel: teve uma infância pobre. Sua casa não tinha água nem aparelho de televisão. Os pais, músicos amadores, se separaram quando ela tinha 8 anos, o que marcou definitivamente sua carreira musical. O primeiro CD traz composições feitas durante a adolescência, em que critica o modo de vida retratado na televisão, em conflito com a realidade em que “para pagar as contas é preciso até negociar com o diabo”.
 Álbum essencial: Pieces of You

Melissa Etheridge: homossexual assumida, viveu muito tempo tentando esconder sua condição. Saiu do armário com o disco que levava o sugestivo nome de Yes, I am. O trabalho seguinte, Breakdown, reafirma sua opção sexual. Ainda critica os padrões de beleza ocidental na faixa Mamma, I’m strange, em que fala das dificuldades de uma infância à margem do padrão Barbie. Álbum essencial: Yes, Iam.

 

*O texto foi escrito em 2001, por isso as referências temporais não estão atualizadas

Mônica Lucas

Mônica Lucas é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo e foi colaboradora da Pulgaonline.

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