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Foto por Luciene Lobo

A meninice que revive

Sabe aquele espírito inquieto que só a meninice tem? Pois é, a Pulga nasceu desse ânimo, da vontade de experimentar coisas novas e poder criar algo no tato, sem um molde. Eram meados do ano 2000, com o emblemático século XX batendo à porta, e o projeto da Pulga surgiu como um canal para dar vazão à produção de um grupo de amigos do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Fazíamos parte de uma geração de jovens comunicadores que tinha de aprender a lidar com a transição do analógico para o digital. Era uma época de sucateamento da universidade pública em que o lema era “se virar” com o que tinha. Diante da escassez de veículos institucionais, da uma urgência de dar conta do mundo e do primeiro contato com o online, o site servia como um canal para tirar da gaveta aquela produção nascente nos corredores do Centro de Humanidades.

Lembro que a ideia e criação da página surgiu a partir do contato com o professor Ricardo Jorge de Lucena Lucas, então meu orientador de iniciação científica, que ministrava uma cadeira opcional de jornalismo na internet. Até hoje, mantenho uma apostila com mil e uma dicas de edição em HTML. Essa perspectiva aberta de criação era o ponto central do projeto. Podíamos não só escrever, mas criar formatos, misturar cores, idealizar seções… Daí me surgiu a concepção do site que, aos poucos, foi angariando colaboradores na medida em que também ganhava forma. Eis que aquela pretensão editorial tinha como seu esteio um grupo de amigos com uma imensa gana criativa. Em uma reação em cadeia, sempre se chagava mais um ao projeto.

A origem do nome é incerta, mas recordo claramente que queríamos um mascote que gerasse alguma identificação com o público. A logomarca inicial foi desenhada pelo artista plástico e ilustrador Rafael Limaverde. Na sequência, os traços da Pulga ganharam contornos temáticos pelas mãos do jornalista Adriano Lima (emérito fundador do jornal Panegírico) , que sempre rabiscava uma pulguinha versão praia, festas juninas etc. Chegamos até a esboçar um perfil para a Pulga que, se não me falha a memória, ganhou o nome temporário de Frida Funghi.

Em paralelo à parte gráfica, tínhamos o imenso empecilho técnico de montar algo “na mão”, sem a ajuda das ferramentas atuais como wordpress e outros editores gratuitos disponíveis na rede. A batalha da edição HTML começou de forma crua, lidando com um emaranhado de códigos, depois o jurássico FrontPage 2000 nos ajudou a otimizar o projeto que finalmente ganhou vida com o, à época revolucionário, Dreamweaver. Foi quase um ano de jornada montando a pulguinha (no meu fiel AMD Duron K6 – II) entre as primeiras concepções de frames e arquitetura da informação até colocarmos o site no ar no dia 30 de dezembro de 2000.

A primeira “edição” contou com a generosa entrevista da cantora Kátia Freitas feita por mim com o auxílio de Giselle Ribeiro. Advogada de batente, Giselle é um dos exemplos do talento da Pulga para angariar colaboradores. Desde o primeiro momento, ela abraçou o projeto e participou de diversas pautas que, anos depois, devem tê-la influenciado quando resolveu também cursar Comunicação. A jornalista Ana Cesaltina é outra que viu a Pulga nascer. Uma espécie de madrinha, Ana acompanhou toda a gestação do projeto e viveu algumas aventuras comigo. Uma delas, ela relembra aqui neste relato afetivo:

Eu vi a Pulga nascer nos anos 2000. Foi gerada da vontade de dar conta do mundo por escrito, com imagens. Do desejo de narrar as mudanças experimentadas na virada do século, fossem na nossa cidade, Fortaleza, fossem na comunicação, área com a qual eu e sua mentora selávamos, naquele momento, pacto de vida profissional. Curiosas, corremos atrás da Pulga por caminhos inusitados. Como num dia em que, buscando entender a magia dos caleidoscópios, cruzamos a rede de terminais de ônibus da cidade para encontrar um cara que dizia ter a habilidade de misturar contas e operar o tal mecanismo de labirintos, luz e cor. Três ônibus depois, estávamos num sobrado de paredes sem rebocos, em um bairro da periferia com dois sujeitos nunca antes vistos. Contando assim, sob o efeito das notícias de violência que pipocam hoje, a toda hora, cria-se até um clima de suspense, não? Mas sentados ali, éramos só quatro cabeças jovens tentando desvendar algum mistério, tateando caminhos. Os caras tinham umas peças prontas e algum material colorido que serviram de mote pra conversa. Mas nos demoramos mesmo foi examinado a vista, misto de asfalto, terra, uns coqueiros que balançavam na janela do primeiro andar. Um microsystem  tocava um rock, talvez Pink Floyd. E a tarde foi passando assim. Um encontro para nunca mais. A Pulga e seu impulso de sair por ai aventurando caminhos me guiou outras vezes, me fez cruzar com outras figuras, umas que acompanho o paradeiro até hoje. Guiou os primeiros passos de uma amizade que amadureceu, enquanto ela, a Pulga, adormecia. É uma alegria vê-la renascer para nos apontar outros caminhos.”

– Ana Cesaltina

 

Como Ana coloca, nossa aventura conjunta guiou os primeiros passos de uma amizade que amadureceu (e frutificou), enquanto ela, a Pulga, adormecia.

O conjunto de afetos que conduziram a Pulga sempre foram fundamentais. Grandes amigos que tenho até hoje escreveram para o site. Uma das matérias mais marcantes foi a inusitada abordagem da jornalista Mônica Lucas sobre a dor-de-cotovelo em O Pop também sofre. Ainda numa pegada musical, o texto da jornalista Liliana Albuquerque sobre o lançamento do álbum “Is this it” (2001) dos Strokes dá uma boa amostra da “vibe” daqueles anos em que estávamos descobrindo não só um ofício, mas também a vida pós-adolescência. O hit “Last night”, citado na matéria, embalou muitas noites no saudoso Ritz (que salvou a pátria após o fechamento do Domínio Público). Íamos todos, ao som de bandas como Cardigans, Supergrass, Cake e outras, descobrindo a cidade, nós mesmos e o que queríamos fazer da vida.

Diversas pessoas escreveram para a Pulga. Dentre os colunistas fixos estavam Ricardo Jorge, e os hoje também professores Saulo Lemos e Laécio Ricardo (que reedita sua participação na coluna Stardust). Amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos davam o ar da graça no site que durou cerca de três anos no ar. Muitos dos colaboradores iniciais mudaram de cidade, de país e, alguns, de profissão.  Mas, os caminhos que levam uns trazem outros e uma nova trupe se juntou para tocar o projeto.

Em silêncio, de mansinho, com um email aqui e outro acolá, a ideia de reunir pessoas com laços e interesses em comum foi ganhando forma. No meio dessa retomada, houve a reafirmação de um processo que se dá por afinidade não só intelectual mas também afetiva. Na acepção mais espontânea e direta de palavras da moda como “rede social”, a Pulga foi juntando gente ao seu redor num “coletivo” diletante de ideias. Lembro que ao fazer o briefing para o trabalho de redesenho da Pulga feito pelo designer Igor Miná eu disse a ele: “Este é um site de amigos, tem que ser leve, clean (embora com cor) e ter uma cara convidativa, acolhedora. Se a Pulga fosse uma casa, ela era uma casa de meninos felizes (e mandei para ele várias fotos de crianças geeks brincando). Casa com cara de gente e não toda arrumada com se fosse uma clínica”. E o Igor acertou em cheio numa estética do acolhimento.

“Entre os colaboradores da nova Pulga, eu sou do time dos que não conheceram a original. Mas foi por muito pouco. Quando a Grazi me apresentou o projeto, tudo aquilo me pareceu muito familiar: os autores, os temas, o cenário. Apenas cheguei no curso de comunicação da UFC alguns semestres atrasado. Mas isso foi bom, porque me permitiu ver A Pulga como um projeto novo, mas, ao mesmo tempo, como algo próximo de mim, em que eu realmente curtiria trabalhar. De fato: criar o design da nova Pulga foi um processo extremamente prazeroso, com muita liberdade e diálogo. A começar pelas referências para o novo design. Para ilustrar o que ela esperava, a Grazi me mandou fotos. Fotos de ambientes acolhedores, ensolarados, coloridos, habitados por gente feliz. Isso ajudou a entender exatamente qual era a vibe e criei em cima disso. Tendo a versão 1.0 do site como outro referencial, comecei o trabalho pela Pulga em si. Investi em traços simples e feitos a mão, com papel e lápis, para chegar a uma pulguinha simpática e com uma cara artesanal como os textos publicados na página. Criada a logo, escolhi uma paleta de tons claros e confortáveis, que convidassem o leitor a visitar a Pulga com frequência e nela ficar um bom tempo a cada visita, além de muitos espaços em branco e destaque para as fotos. O resultado é um dos projetos mais legais em que já trabalhei.”

– Igor Miná

 

Hoje, além de um novo design, o projeto renasce com uma proposta menos factual. Sem a pretensão de dar conta das mudanças do mundo, expressar nossa singela apreciação dos fatos já está de bom tamanho. Assim, as seções foram repensadas para que todos pudessem escrever com calma, sem uma preocupação com o tempo e sim com a abordagem. A coluna Andarilho, uma das primeiras a nascer, expressa bem isso: idealizada para ser um mosaico do sentimento de diversas pessoas sobre a fronteira entre ser estrangeiro e pertencer a um lugar, o texto de estreia da publicitária Tatiana Chaves fala de Dublin e mostra uma perspectiva bem pessoal sobre o que se descobre viajando. Depois da Tatiana, virão outros escribas e outras paragens. Diversos olhares sobre a mesma provocação. Além de seções “volantes”, a nova Pulga conta com alguns colunistas fixos, espaço para resenhas, entrevistas, fotos… Com diversos formatos e sem muita pretensão de reinventar a roda, reafirmamos nossa pretensão maior de ser uma “casa que abrigue diversos amigos e abordagens”.

É esse olhar para o outro e para a descoberta que sempre me pareceu uma vocação maior a ser vivida. Com mais de uma década de formada, como aluna e professora, vi a inquietação gerar experiências jornalísticas incríveis a partir do curso de Comunicação Social da UFC. O trabalho do grupo Trema e da revista Aerolândia são memoráveis. A Pulga, o Panegírico e tantas outras peripécias que surgiram nos corredores do poleiro (apelido carinhoso de prédio da Comunicação) são exemplos dessa mesma disposição que, longe de ter um carimbo institucional, vai juntando pessoas de outros lugares e mostrando que, no formato que for, a gente tem mais é que manter alguma inquietação pela vida. Sem nenhuma preocupação utilitária, é com esse espírito da meninice que, quatorze anos depois, tenho a alegria de ver a Pulga renascer.

Por Grazielle Albuquerque – editora da Pulga
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