Crônica

Neuer Jungferntieg

Alster5

Quando cruzei pela primeira vez a Neuer Jungfernstieg, 21, em outubro 2011, eu tinha esquecido tanta coisa sobre mim. Dias antes, em Berlim, havia escrito uma carta a dois amigos falando sobre aquela viagem. Era uma espécie de memorial interrompido, um roteiro que dava conta de uma jornada antiga que nunca fora concluída. Era exatamente isto: eu estava onde queria ter estado há dez anos. Mas, estar ali, tanto tempo depois, era realmente o que eu queria? Ainda fazia sentido? Questionava os meus amigos, como num sofisma. Uma pergunta feita a mim mesma que eu, de pronto, já ensaiava a resposta: “Não, não havia mais sentido porque eu era outra pessoa”. Meus sonhos juvenis não caberiam mais ali. O sentimento era de inadequação, como se algo não pudesse mais se realizar.

Não se vive uma mesma história duas vezes, ainda que na primeira ela tenha sido promessa e não realidade. É preciso um significado de agora, do tempo presente, mesmo que traga em si a lembrança do que foi. E a grande dificuldade de juntar essas pontas, está em atravessar-se. 

Diante daquela impossibilidade, em algum momento do e-mail exponho o dilema: “Vivo uma confortável vida de classe média ou saio para o doutorado fora e dou algum crédito à aventura e aos sacrifícios inerentes a ela? E, aí, vem a pergunta: qual o sentido disso?” Eis o ponto: esse sentido deve ser atualizado. Não se vive uma mesma história duas vezes, ainda que na primeira ela tenha sido promessa, e não realidade. É preciso um significado de agora, como algo novo, do tempo presente, mesmo que traga em si a lembrança do que foi. E a grande dificuldade de juntar essas pontas, preencher esse hiato, está no abismo de atravessar-se. Um fio solto de um sonho, a depender da sua natureza, se não deixa à deriva o próprio desejo – que sempre pode mudar –, decerto abandona uma parte do sonhador que em algum momento se perde de si, do que poderia ter sido e não foi. Há uma ruptura. Recuperar isso é impossível. Contudo, num instante qualquer, um gatilho nos provoca a saber o que deixamos para trás.

Poucas obras falam dessa experiência de maneira tão corajosa e bela quanto “Santiago”, de João Moreira Salles. Lançado em 2007, o documentário havia sido filmado em 1992, quando o cineasta tinha 30 anos, mas só aos 43 ele conseguiu voltar à edição do material, enfrentá-lo. E isso é colocado de pronto. Na primeira cena, o narrador enuncia: “Há treze anos, quando fiz estas imagens, pensava que o filme começaria assim: primeiro, uma música dolente. Não essa que eu só conheci mais tarde, mas algo parecido; depois, um movimento lento em direção a três fotografias. (…) Uma das minhas lembranças de criança sou eu e meus irmãos vestidos de copeiros, com uma bandeja na mão, entre os convidados, brincando de servir. Nessas ocasiões, quem punha a bandeja em minha mão e me ensinava a equilibrá-la sem derrubar os copos era Santiago, o mordomo da casa. O filme que eu tentei fazer há 13 anos era sobre ele”. Assim, João inicia a narração em uma película que não documenta um objetivo, não se volta a uma finalidade, mas expõe sua jornada interna para, com a passagem do tempo, conseguir ver o que antes lhe era impossível. É um filme sobre o filme, uma metalinguagem sobre a construção de uma obra audiovisual. Mas é, sobretudo, uma reflexão sobre o caminho que o diretor encontrou para poder realizá-lo.

Em dezembro último, durante um debate na Matilha Cultural, em São Paulo, perguntei a João sobre a relação entre “Santiago” e seu último filme, “No intenso agora”, lançado em 2017. Ambas são narrativas em primeira pessoa e, das múltiplas coisas de que se pode falar, ele enfatizou uma: Santiago é um filme sobre nós. O jovem João começou a filmar o mordomo de sua casa achando que ele era um personagem externo a si. Um outro. Mas esse argumento era falso porque aquele era o criado de sua casa e ele não era um cineasta estranho. Era o Joãozinho, como Santiago o chamava. Como ele próprio afirma, era um filme sobre nós, mas isso só pode ser visto depois. Ao concluir o documentário, João fala: “E, no fim, quando Santiago tentou me falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmera”. Foi preciso tempo, tempo para atravessar-se. O documentário inicial de 1992 nunca pôde se concretizar, mas João Moreira Salles realizou sua jornada. O filme de 2007 é tanto algo novo como a representação dessa travessia.

O que aconteceu comigo é que eu simplesmente tinha esquecido. A vida faz isso com a gente, né? De repente há uma interrupção em nosso caminho, algo se parte e vamos nos embotando, perdendo a memória de quem somos. 

Por algum motivo psicanalítico não tão misterioso assim, Santiago sempre foi um filme que me tocou. Um quase diário a indicar a descoberta do tempo, de si e do outro. É fácil pensar nisso agora, tem um nexo. Mas o filme aqui é uma alegoria do meu incômodo, embora à época não o soubesse nominar. O que me importunava era diverso de um “nós”, de algo não percebido. O que aconteceu comigo é que eu simplesmente tinha esquecido. Tinha esquecido muito sobre mim. A vida faz isso com a gente, né? De repente, há uma interrupção em nosso caminho, algo se parte e vamos nos embotando, perdendo a memória de quem somos. Lygia Fagundes Telles costuma dizer que a gente precisa se “desembrulhar”. Mas como fazer isso se às vezes sequer temos a dimensão das camadas que nos “protegem”?

Eu ensaiava alguma visão e meu incômodo é sinal disso, mas não conseguia de fato enxergar o todo. Uma vida adulta precoce demais tinha me tirado a ideia de que era possível eu me arriscar, me permitir. Posso falar da vocação, do mundo… Mas me refiro essencialmente a uma noção de “pertencimento”, não num sentido pueril e pretencioso que o termo carrega, mas no da permissão que o sujeito concede a si mesmo ao se sentir parte de algo. Obviamente, sentimentos como o amor e o pertencimento são também uma linguagem, tem elementos que nos escapam porque são acessados sem que tenhamos o controle. Por isso uma obra de arte nos salva, porque ela nos toca num ponto que desconhecíamos, ela nos revela. É “de lá para cá”, mas nós precisamos abrir a porta, sentir que merecemos.

Para Habermas, a legitimidade da lei carece de validade; para Freud, é necessária a transferência entre o paciente e o analista. São ligações misteriosas, requerem uma forma de permissão, um aceite. Para Deleuze, a amizade requer não uma comunhão de ideias, mas uma pré-linguagem comum. Numa entrevista à TV francesa, ele explica: “Há pessoas em relação às quais não entendo nada do que me dizem. Mesmo coisas simples como ‘passe o sal’, eu não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, com o qual não posso concordar, mas entendo tudo o que dizem. É um mistério, um charme”. Ele complementa: “Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua. Não no sentido de propriedade, mas é sua. E você espera ser dela. Nesse momento nasce a amizade”. É disto que falo: desse encontro com o outro. Especificamente, com outro que há em nós, escondido.

Sentimentos como o amor e o pertencimento são também uma linguagem, tem elementos que nos escapam porque são acessados sem que tenhamos o controle. 

Nem sempre é fácil achar os sinais do que escondemos de nós mesmos, mas, em determinados momentos da vida, um fresta se abre. No começo, Hamburgo foi isto: uma porta aberta além de mim. Primeiro, foi o incômodo, a dúvida. Só depois pode ser a experiência plena. Os seis anos que separaram minha primeira viagem à cidade, em 2011, e a estadia mais recente, em 2017 – com direito a uma breve parada, em 2013 –, foram também a cronologia de uma jornada interna. Gastei esse tempo, esse precioso tempo, atravessando-me para reencontrar algo perdido.

A Hamburgo que conheci, em 2011, era um cenário tão diminuto quanto desafiador. Antes de qualquer coisa, a cidade foi a Colonnaden e seu pequeno comércio: a loja de botas de cowboy americano, o antiquário com louças delicadas e um casal de velhinhos, as duas livrarias – uma sofisticada e a outra um varejo de livros de idiomas – quase vizinhas, a velha casa de chá, a bifurcação com a Gustav-Mahler Platz, o café Caravela com suas coxinhas a me lembrar o Brasi. E foi, sobretudo, o sabor do macarrão com frutos do mar do Vinum et Cibus. O vinho tinto e a pasta servida com muito molho. O descer os degraus rumo ao porão para depois “emergir” equilibrando os pratos e pousá-los nas mesas altas no meio da rua. Como em um dos cenários do Circo do Dr. Lao, algo entre o lúdico e o estranho.

Eu observava o passo das pessoas, o vaievém das bicicletas, imaginava como poderia ser tal rotina. Aquele dia no fim de outubro de 2011 se fez assim: o céu cinzento, com um pouco de frio, o gosto da comida ainda na boca, uma rua estreita como atalho para Neuer Jungfernstieg e, finalmente, o German Institute of Global and Area Studies, o Giga, no número 21. Defronte, o Alster. Recordo de mirar o lago, ver um zepelim, as folhas caindo no outono. Olhava por entre alguns ganhos à margem do espelho d´água e, vendo de longe o céu, como já disse, tinha a sensação de uma porta aberta além de mim.

No começo, Hamburgo foi isso: uma porta aberta além de mim. Primeiro foi o incômodo, a dúvida. Só depois pode ser a experiência plena. Os seis anos que separaram minha primeira viagem à cidade da estadia mais recente eu gastei atravessando-me para reencontrar algo perdido.

Seis anos depois, Hamburgo foi deixando de ser espanto para ser a vivência. Era o momento de chegar para ficar alguns meses. O plano de fazer o doutorado fora do Brasil ganhava, então, uma forma possível. A cidade saiu da paisagem restrita para construir-se numa rotina. A primeira morada na Bramhsalle, o caminho que fazia andando pela Gridelhof, o tempo de sentar com calma na Allende-Platz e ver o movimento em frente ao cine Abaton, o Grupo de Estudos de Temas Brasileiros na UNI, os cafés da Sternschanze, as bicicletas, o fishmarket, a chuva intermitente, os longos dias de verão, o metrô, o gosto das geleias e do Somersby. Landungsbrücken, HafenCity, Reeperbahn… A camaradagem dos amigos. A gentileza, o apoio, as dicas de hostels baratos, a garimpagem dos livros, os dias no parque, a vida de estudante, o dinheiro contado, o desafio do idioma, os novos laços que se desenhavam. De alguma maneira, estava entre aqueles que teriam estado comigo anos atrás.

E, de todas as coisas que poderiam ser ditas, das físicas às subjetivas, a mais honesta é a sensação de pertencimento ao cruzar os corredores do Giga. Uma certeza íntima foi se revelando no atravessar das portas, ao tomar café no final da tarde com um bando de nerds aficionados por Ciência Política e Relações Internacionais. Éramos felizes, mesmo meio “espremidos” na cozinha do 6o andar. E, dessa forma, todos os dias, ao passar pelo Alster, eu agradecia a chance de me lembrar do muito sobre mim que havia esquecido.

Essa lembrança é curiosa porque não é estanque, restrita ao passado, nem mesmo mora fora, na rua. Ela fica aqui dentro, hoje, me provocando a ser quem sou. De vez em quando aparece, irrompe, como num dia em que vi um quadro no Checkpoint Charlie. A imagem de Reagan e Gorbachev assinando o tratado de redução das armas nucleares em 1987 e, num piscar de olhos, estava diante do meu velho livro do Melhem Adas que me fez querer estudar Ciência Política. Era Santiago falando com a câmera desligada, as madeleines de Proust, o mecanismo que te desperta algo guardado e tão constitutivo de quem se é.

 
É difícil admitir a fragilidade, os medos e os outros esqueletos que temos no armário. Infelizmente, desconheço outro caminho. Porque só a percepção de que algo estava profundamente errado nos dá a chance de acertar a trilha.

No fundo, quando quis escrever sobre Hamburgo, nessa perspectiva tão íntima, era disto que queria falar: do momento em que nos lembramos quando o sentido se reelabora. Mas isso só é possível depois de um árduo caminho de enfrentamento. É trabalho duro, contínuo. Dói um bocado. Mas é difícil admitir a fragilidade, os medos e os outros esqueletos que temos no armário. Infelizmente, desconheço outro caminho. Porque só a percepção de que algo estava profundamente errado nos dá a chance de acertar a trilha.

Em outra ocasião, pude escrever sobre Hamburgo do ponto de vista histórico, numa crônica* sobre as mudanças de um tempo e as nossas próprias. Nesse texto, uso uma frase de Aracy de Carvalho que, numa referência ao passado, diz: “Esse viver ninguém me tira”. Mas subverto a citação e a uso como predição, uma recompensa a quem se arrisca. Repito essa fase para mim, como uma forma de não mais esquecer. Atravessar-se é uma viagem, a mais difícil. E só a coragem para tal travessia leva a algum lugar com sentido. Há despedidas nesse caminho, mas hoje fico com o desejo de ir além e com os encontros, precisamente o que temos conosco.

É disto que falo e repito: Joãozinho, um “charme”, o Alster… Algo nos sopra o ouvido. De repente. E eu só consegui entender isso, muito antes de voltar ao Giga, quando me lembrei das coisas mais íntimas que carregava e do porquê de tê-las deixado de lado. Isso me traz de volta a João Moreira Salles e à sua narrativa. Se “Santiago” só pôde ser feito quando João entendeu quem ele era naquele enredo, em “No intenso agora” (2017) já há um diretor plenamente maduro a falar sobre dar sentido às coisas quando o ápice da vida parece já ter acontecido. Pode-se pensar que este é um filme sobre política, sobre 1968, mas não é. É sobre a capacidade de dar sentido ao novo. No instante em que nos lembramos de nós, algo se liga, mas não voltamos ao passado: precisamos dar um novo significado ao que nos tornamos e ao que temos pela frente.

Só a coragem para a travessia leva a algum lugar com sentido. Hoje fico com o desejo de ir além e com os encontros, precisamente o que temos conosco.

Talvez eu faça todas essas ilações porque ainda seja difícil falar sobre mim em primeira pessoa. Assumir os desejos, os riscos. Ir lá no osso, naquela menina que um dia fui. Ainda coloco uma camada, tal qual João Moreira Salles, que escala o irmão Fernando para narrar Santiago. Mas algo em mim já se atravessou definitivamente, o medo que tinha voltou a ocupar o lugar que lhe é devido na equação da vida. Finalmente, posso dizer que o meu medo de ficar é maior do que o de ir e eu reencontrei uma das partes mais preciosas de quem sou.

 

Grazielle Albuquerque

Grazielle Albuquerque é jornalista, cientista política e arengueira. Criou a Pulga ainda na faculdade com um grupo de amigos. Hoje revive a meninice e a aventura da escrita. É viciada em história, política, café e música. Cultiva o bom humor e tem um quarto azul.

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