Viagem

Viajar é apreender tudo que a alma pede

Vista do museu do rio que mostra a cidade portuária de Antuérpia – Flávia Castelo

 

O verão estava chegando. Estendi a canga na grama (no inverno, ela virava echarpe), arrumei a mochila (como se fosse um travesseiro) e deitei de bruços – ritual que anunciava uma tarde de estudos numa espécie de parque-museu (Middelheim) da Antuérpia. Fiquei observando a coreografia em que as nuvens e os galhos das árvores competiam. Era uma dança em tons de azul, marrom e verde, com pinceladas brancas e cortes de raios dourados, que me hipnotizava muito mais pela intensidade das cores do que pelo próprio movimento. Eu me perguntava por que, apesar da distância dos meus, tudo era tão mais belo, leve e vivo. Fiquei realmente impressionada com as nuances da vida local e quase todos os dias, durante aquele ano em que morei na Bélgica, (me) fiz a mesma pergunta (ou alguma de suas variações): Por que as flores aqui são mais coloridas, têm mais vitalidade? Por que eu tenho vontade de comer cada ‘casinha’ que vejo? Até o branco da faixa de pedestre e o vermelho da ciclovia são encantadores (e convidativos). Todo mundo quer andar por eles! Pedestres e ciclistas. Nesta ordem e organizadamente. Por que, sempre que eu chego de viagem, levanto a cabeça para o alto, percebo todo o esplendor da Estação Central (um dos principais cartões postais da cidade dos diamantes, cervejas, waffles e chocolates) e, contraditoriamente, me surpreendo e me sinto em casa?

Morei no país sede das grandes organizações internacionais, entre 2012 e 2013, para responder a algumas questões de uma pesquisa acadêmica e voltei com mais dúvidas do que eu poderia imaginar. Simplesmente porque a viagem extrapolou a biotecnologia, meu tema de estudo. E considerando que é tendo dúvida que se aprende, penso que apreendi muito. Com dois ‘Es”, mesmo. Apreendi a (con)viver comigo, sozinha. E aprendi a ser (minha) melhor companhia. Descobri que os rituais podem (e devem) ser feitos, especialmente, para mim, sem qualquer testemunha. Que eu posso comprar um bom vinho, preparar a banheira e revezar meus pensamentos com o observar das flores dançando na água morna espumante ou, tranquilamente, imaginar as combinações dos ingredientes (que passei a manhã escolhendo na feira) do jantar de logo mais. Jantar preparado por mim. E para mim. Só para mim.

Entendi, na prática, que a distância entre arrumar a própria casa e se sentir bem e segura na rua, a qualquer hora, é bem menor do que entre a das bocas de jovens apaixonados.

Não, não estou cultuando o egoísmo. Fico descabelada com essa moda besta de olhar para o próprio umbigo. Apenas tive contato comigo mesma durante mais tempo do que tinha tido até então. Percebi mais a cidade também. E as pessoas. Não como ainda sinto ‘perceberem’ por aqui. Lá não importava se você ganhava um salário mínimo ou cem mil por mês. Se a roupa foi herdada ou comprada em boutique. Se você era gordo ou magro. Preto, branco ou amarelo. Todos sentavam lado a lado, no transporte público, pontual e, mesmo com tudo falado e escrito em holandês, bem fácil de entender sua metodologia e percursos. Andavam pelas mesmas praças, sentavam nos mesmos bancos, pedalavam as mesmas bicicletas.

Entendi, na prática, que a distância entre arrumar a própria casa e se sentir bem e segura na rua, a qualquer hora, é bem menor do que entre a das bocas de jovens apaixonados. Até descobri (mais) um dos meus ‘eus’ – sou geminiana! A Flavilene. Ela é minha versão ‘dona de casa exemplar’: ela, digo eu, colocava uma sainha azul, camiseta branca e batom vermelho no melhor estilo liberte, égalité, fraternité e com o inseparável amigo daqueles momentos – o aspirador de pó – ela ouvia do rock ao brega tão alto quanto a vizinhança permitia. E deixava tudo brilhando. Se eu fosse pagar para alguém fazer o serviço, seria mais caro do que a minha diária como bolsista de doutorado. E, certamente, não teria a mesma sensação de andar a noite, sem companhia do sexo oposto, pelas ruas fotografando tudo o que meus olhos (ou alma) pediam.

Não temos as estações do ano bem definidas que trazem com mais clareza as mudanças de cores e humores. Mas, podemos pintar um quadro (mais) bonito e, de preferência, bem (mais) louco.

Digo tudo isto (pelo saudosismo também) não porque acredito existir uma cidade melhor do que a minha. Também acho que não precisamos ir à India para nos encontrar. O contato consigo pode acontecer no banheiro de um bar. Digo para lembrar que a gente aprende tanto com as pessoas, apreende tanto com as cidades, desconstrói tantas certezas e multiplica tantas dúvidas, que podemos nos questionar o que estamos fazendo com Fortaleza e o que ela está fazendo conosco. Ela está nos ensinando a lição errada ou nós não estamos prestando atenção? Não temos as estações do ano bem definidas que trazem com mais clareza as mudanças de cores e humores. Mas, podemos pintar um quadro (mais) bonito e, de preferência, bem (mais) louco. Afinal, quem é que quer viver com a falta de esperança que a normalidade nos traz?

Vou já atualizar o passaporte e colocar o pé na estrada! Quando eu voltar, tudo estará exatamente como deixei. A única coisa diferente será eu mesma. Melhor, o meu olhar. Afinal, não existe uma metamorfose ambulante como a do viajante.

 

Flávia Castelo

Flávia Castelo é mãe, estudante, dona de casa, advogada e professora com mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFC). Morou na Bélgica, entre 2012 e 2013, quando estagiou na Vision on Technology e fez doutorado sanduíche, em Biotecnologia, na Universiteit Antwerpen. Sua paixão número um é ouvir e escrever sobre as histórias fabulosas da filha.

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