Política

Dos ventos hostis aos lampejos de esperança

casabranca2

Os que me conhecem, sabem: não sou do tipo pessimista, cabisbaixo, tampouco daqueles que praguejam contra tudo e todos. Não gosto de remoer os fardos diários e, normalmente, reelaboro os problemas do dia-a-dia com uma noite de sono. Na pior das hipóteses, consigo digerir as dores mundanas na mesa de bar (não, não sou alcóolatra, acredite-me!). Mas confesso que o meu estilo “easygoing” (“tudo passa, tudo passará”) tem esbarrado no turbilhão dos eventos e dissabores que 2015 nos tem apresentado. A ponto de eu quase me encontrar parafraseando a célebre frase proferida pela atriz Regina Duarte durante a campanha presidencial de 2002: “sim, eu tenho medo”. Dói confessar, mas é necessário.

É fato que ventos estranhos e agourentos sopram do exterior (crescimento dos partidos ultraconservadores na Europa, expansão do Estado Islâmico, notícias contínuas de práticas xenofóbicas contra imigrantes, acirramento da polarização EUA e Rússia, iminência de nova crise econômica…). Mas as rajadas mais cortantes e temerárias, devo admitir, procedem de Brasília e se irradiam para outras praças brasileiras. É tanta coisa estranha e “fora da ordem” que fica difícil enumerar, hierarquizar e ensaiar uma análise lúcida, urgente. Como não sou especialista em conjuntura política, trato apenas de reiterar o meu mal-estar, a minha aflição. Quem sabe na tentativa de encontrar vozes e anseios igualmente abalados, e assim restabelecer uma cadeia solidária e recobrar alguma esperança…

Pergunto: que tempos são estes em que decisões tortas e confrarias abjetas florescem à luz do dia, sem qualquer receio? Em que tanta informação vital é encoberta ou distorcida sem o menor pudor?

Aliás, é precisamente do campo político que se origina parte significativa deste desconforto. Mais especificadamente do Congresso Nacional, cuja composição atual ostenta um perfil conservador como há décadas não se via desde o restabelecimento da nossa democracia. Pergunto: que tempos são estes em que decisões tortas e confrarias abjetas florescem à luz do dia, sem qualquer receio? Em que tanta informação vital é encoberta ou distorcida sem o menor pudor? Onde tantos legisladores erguem sua voz para pregar valores e palavras de ordem que, há 10 anos, seriam pouco admissíveis ou causariam constrangimentos? É fato que, neste País como em muitos outros, política e interesses privados nunca foram instâncias dissociadas. Mas o que antes permanecia nos bastidores, para não atrair a censura dos mais esclarecidos, hoje triunfa sob os holofotes da grande mídia e com a cumplicidade de parcelas da dita “boa sociedade”.

Para não perder ovelhas do seu vasto rebanho de eleitores/financiadores, políticos vinculados a grupos econômicos e a facções religiosas ortodoxas, hoje e mais do que nunca, se recusam a legislar de forma idônea, sem se submeter a interesses escusos e de modo a promover os avanços necessários à solidificação da nossa frágil democracia. Ao contrário, são os princípios democráticos, as conquistas trabalhistas e os direitos das minorias que sofrem ameças diárias, abalos sucessivos, riscos de apagamento. E nada disso parece repercutir com ênfase nas rodas sociais – percebo que um amigo ou outro, de forma isolada, manifesta indignação. Mas parcelas numerosas da sociedade, quando vão às ruas ou organizam fóruns virtuais, parecem ignorar este quadro, preferindo direcionar sua munição unicamente contra o Executivo.

Reconheço que alguns dos nossos problemas atuais derivam de certa inoperância da presidente, figuram pouco hábil para o jogo político, e das alianças instáveis costuradas pelo PT para alcançar a tal “governabilidade” (alianças que, por sua vez, implicaram em concessões arriscadas e no gradual abandono de certas bandeiras históricas do partido). E sei que os recentes e sucessivos casos de corrupção na vida pública tem inquietado nossa boa sociedade. O resultado desta overdose de informações negativas, habilmente inoculadas pela grande mídia, são os sucessivos panelaços e atos de hostilidades contra Dilma Rousseff. Mas o que me indigna nestes protestos, além do discurso ressentido por parte daqueles que desejavam ter Aécio Neves na presidência e dos slogans que conclamam a volta do “regime militar” (oi??!!), é a cegueira do eleitor ante as barbaridades que transcorrem no Congresso Nacional.

Ao contrário, decisões arbitrárias conduzidas por Eduardo Cunha e massivamente abraçada pelos parlamentares com frequência encontram entusiastas nestes protestos ou na “sessão de comentários” dos jornais online. Uma espécie de ódio canalizado ao PT parece nos impedir de perceber as irregularidades do Legislativo (e também do Judiciário, se quisermos completar a trinca). E o ódio, insisto, é um sentimento destrutivo – sabemos onde a intolerância e os radicalismos podem nos conduzir, a história já nos demonstrou inúmeras vezes! Tanta cegueira e passionalidade me levam a conjugar um mantra diário: “não leia o comentário dos internautas”, “não leia o comentário dos internautas”. E também não hesito em bloquear as “almas sebosas” do ciberespaço. Do contrário, tenho medo de infartar ou de jamais recobrar minha eventual esperança.

Ressalto que não escrevo para elogiar o PT, mas para atestar minha indignação. Que tempos são estes em que o Estado Laico é permanentemente ameaçado por congressistas radicais, em que a redução da maioridade penal é debatida como se fosse “pauta de programa de auditório” (e com o depoimento/intervenção de figuras midiáticas questionáveis), em que a precarização das relações de trabalho é vista como saída única para as crises econômicas, em que uma reforma política séria se converte em pilhéria infeliz? Que triste constatação: hoje somos obrigados a admitir que Marcos Feliciano, deputado evangélico do PSC e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, antes nosso grande desafeto, era apenas o prenúncio de problema bem maiores.

Em outros termos, enquanto parlamentares do nosso Congresso ainda insistem em discutir pautas arcaicas como a “cura gay”, a decisão da Corte americana alavanca o debate das minorias para a esfera do nivelamento dos direitos civis. Felizmente!

Enfim, após as eleições de 2014, tudo se agravou, tudo descarrilhou. A bancada ruralista não cessa de defender o agronegócio às custas de qualquer sacrifício ecológico; financiador de muitas campanhas eleitorais, o setor da construção civil dita as regras do desenvolvimento urbano sem encontrar resistências; os parlamentares evangélicos, por sua vez, parecem muito mais atentos à rigidez do Velho Testamento do que às diretrizes da Constituição ou, pelo menos, à compaixão dos Evangelhos. Um conservadorismo persistente se insinua em suas decisões e pronunciamentos, e parece encontrar eco na “boa sociedade”. Tempos sombrios, anos de provação, eu diria. O que virá pela frente? Por enquanto, só posso temer. A serpente, outrora reclusa no ovo, sinaliza o claro desejo de romper a casca…

Negatividade à parte, quero finalizar o texto com algo que me comoveu positivamente nos últimos dias. Refiro-me à recente decisão da corte suprema dos EUA de reconhecer a legitimidade do casamento igualitário em todo o território americano. Os EUA estão longe de ser o primeiro país a acolher tal decisão; na verdade, tendo em vista os avanços significativos conquistados pela comunidade LGBTT em algumas nações européias e latinas, cabe ressaltar que a pátria de Obama chega ao desfecho deste debate com um atraso lamentável. Mas, tendo em vista a centralidade dos EUA no tabuleiro global, é inevitável a repercussão desta medida em “outras praças”, bem como a intensificação de sua cobertura pela grande mídia. Em outros termos, enquanto parlamentares do nosso Congresso ainda insistem em discutir pautas arcaicas como a “cura gay” (pauta claramente reveladora de sintomas homofóbicos), a decisão da Corte americana alavanca o debate das minorias para a esfera do nivelamento dos direitos civis. Felizmente!

Todavia, para além das trocentas matérias veiculadas pelo noticiário internacional, o resultado mais comovente deste episódio, pelo menos para mim, se fez evidente nas redes sociais. Em questão de horas, dezenas de hashtags proliferaram (na esteira do trinfante #LoveWins) e milhões de internautas tingiram seus avatares com as cores do arco-íris. Uma celebração festiva e voluntária, e que, de algum modo, também alterou a coloração do meu humor. Pelo menos por alguns dias, já que, por enquanto, ao que tudo indica, viveremos de brechas, de respiros, de eventuais lampejos de esperança…

Laécio Ricardo

Laécio Ricardo é (ou foi) jornalista, é doutor em Multimeios pela Unicamp e professor da UFPE. Apaixonado por gatos, tem convicção de que é cearense, não obstante pistas contrárias, e adora o mar, apesar da epiderme albina.

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