Valter Hugo Mãe sempre me intrigou pela beleza de sua prosa que é doce sem ser ingênua. Quando decidi entrevistá-lo para a Pulga, o fiz por impulso. Pensava que talvez pudesse achar um punhado de palavras que retratassem a humanidade contida no seu texto. Então, fui a uma noite de autógrafos numa pequena galeria na Vila Madalena e fiquei a observá-lo. Sem contato prévio, empresários ou cartões de apresentação pude ver um sujeito que levou horas a autografar pacientemente todos os livros que se punham à sua frente. Com duas canetas, intercalava-as de acordo com a página de guarda dos livros. As folhas pretas ganhavam a cor prata, as brancas eram escritas de azul. E ele escutava as histórias, todas. Num chiste, arrematava as dedicatórias com o que conseguia por de pessoal. Ao final, me aproximei e indaguei se aquilo não era muito cansativo. Ele me respondeu que era seu trabalho, era melhor do que carregar pedras – sabia exatamente o que fazia. Ali estava a humanidade que eu buscava. Naquele instante nos entendemos.
A entrevista acabou acontecendo no outro dia. Ao longo de mais de uma hora de conversa o gesto de busca por algo, o olhar de quem procura o outro foi se descortinando. Eu me enganei, não havia representação. Diante de mim estava um homem adulto, reconciliado consigo, ciente do que era humano e agradecido por isso. Escutar sobre a sua trajetória foi perceber o caminho da maturidade numa dimensão central, de reencontro. Sem afetação, Valter Hugo Mãe sabe onde põe os pés porque a estrada nem sempre lhe foi fácil. Nos dizeres de uma amiga, nós “tuteamos”, conversamos sem formalidades. Assim, descobri preciosidades em sua fala, vi também minhas esperanças e cicatrizes em muitas delas. Em uma reflexão sobre a literatura e a vida, ele fala dos caminhos agrestes e do tempo que o fez perceber a felicidade sem deslumbre, numa dimensão possível de uma cortina amarela. Tal qual a narradora de “O paraíso são os outros”, Valter Hugo Mãe repete: “A maturidade, no fundo, é a capacidade que temos de corrigir”. E só cresce quem corrige, quem se dispõe a construir. Ele diz ter falhado, mas produziu tanto. Reencontrou-se. Chegou à maturidade e tatuou no antebraço “takk” (obrigado em islandês). Fechou um ciclo, abriu outro. Ah, o humano, demasiado humano! Sou eu quem agradeço, Valter. Takk.
Por Grazielle Albuquerque
Essa entrevista contou com a edição de Alan Santiago e com as pontuações de Iana Soares e Débora Dias
A Pulga: Valter, sua disponibilidade me impressionou muito. Ontem, na sessão de autógrafos, fiquei ali em um canto prestando atenção. É imensa a quantidade de pessoas que sentavam naquele sofazinho para te contar histórias. E há toda uma maneira como você as escuta, pega um elemento particular para fazer as dedicatórias. Então, existe um cuidado. Você me pareceu uma pessoa procurando a humanidade do outro, procurando uma coisa de concreta, longe da afetação de uma noite de autógrafos. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso.
Valter Hugo Mãe: É, ontem eu até estava, bobagem minha, achando que ia ser uma festa de circulação e que ia dar tempo pra conversar com todo mundo e ficar assim, de copo na mão e assinando um livro aqui, um livro ali… Eu não percebia que tinha tanta gente. Eu não sei se nascia gente das paredes, mas minha intenção é muito essa: sempre conseguir dar alguma forma que as pessoas valham como pessoas. Não tenho muito a capacidade ou não consigo pela minha consciência ver as pessoas como números. Eu não cresci achando que seria uma pessoa importante e, por isso, hoje não me considero desimportante, mas não me considero mais importante que ninguém. Então, é muito fundamental pra mim que a relação com os leitores seja uma relação de igualdade.
E sou exatamente aquele que perde mais porque eu sou o que participa ausente. Mas, para cada uma dessas pessoas, existe uma presença. E por isso eu fico muito curioso, às vezes, até por saber, perante esta mulher e este homem, o que é que significo e o que poderia ser se estivesse mais perto.
A Pulga: Mas, para além da sua condição de escritor, imaginemos que você tivesse outro ofício. A sensação que eu tive é, de fato, a de uma pessoa interessada em outras pessoas, como você acabou de dizer. Quando nasce esse interesse? Você acha que está intrinsecamente ligado à tua expressão pela palavra? Como isso interfere nas suas histórias?
Valter Hugo Mãe: Você sabe que eu tive uma infância, uma adolescência e uma juventude muito solitária. Sentia sempre como a última pessoa no mundo, por isso é que eu estava dizendo, cresci achando que eu não era rigorosamente nada importante. Achava até que não era um ser humano viável, que nunca chegaria a ser adulto, a ter uma profissão. Nunca vislumbrei em mim, assim, um gênio qualquer, uma inteligência específica para alguma coisa. Então, hoje, quando encontro com as pessoas, fico muito maravilhado por, afinal, fazer parte, ver uma sociedade para mim. Você entende? De alguma forma, a solidão não era uma rejeição, era só uma falta de jeito que eu tinha para chegar às pessoas. Então, hoje quero muito que as pessoas sejam. Quando eu dizia isso de ver os leitores como iguais, é que não gosto muito da ideia dos leitores como admiradores. Eu gosto da ideia de ter amigos. São os amigos que sei que não posso conhecer pessoalmente a fundo. Eu sei que não vou saber o nome de toda a gente, não sei se as pessoas são casadas, são solteiras, querem ficar casadas ou se querem ficar solteiras, mas, no momento em que eu as encontro, sei que há uma história entre mim e essas pessoas. E sou exatamente aquele que perde mais porque eu sou o que participa ausente. Mas, para cada uma dessas pessoas, existe uma presença. E por isso eu fico muito curioso, às vezes, até por saber, perante esta mulher e este homem, o que é que significo e o que poderia ser se estivesse mais perto. Então, vou colecionando algumas pessoas que vão comparecendo mais vezes, já vou fixando e fico muito contente com isso. Quando eu vejo alguém que até lembro o nome, acho que isso compensa também pra mim, porque sinto indiretamente que a casa cresce. Eu acho que a gente volta para casa quando está com alguém que conhece, quando está com quem se sente seguro. Então, vir a São Paulo e olhar para cara de algumas pessoas, conhecer os nomes, saber minimamente quem são faz com que minha casa seja muito grande.
A Pulga: Houve alguma situação em que estar como espectador do outro te ajudou no relato de alguma personagem?
Valter Hugo Mãe: Sim. Quando eu escrevi “O Filho de Mil Homens” (2011), por exemplo, encontrei uma senhora, em Lisboa, numa sessão de autógrafos, que estendeu o livro pedindo para eu assinar. Perguntei seu nome e ela disse que se chamava Isaura. E, no exato momento em que eu pouso a caneta para começar a escrever, ela faz um discurso demolindo o nome Isaura, atribuindo até culpa ao próprio nome, à fealdade do nome para uma certa tristeza, um certo desamparo na sua vida. Fiquei perplexo porque acho o nome Isaura muito bonito. Eu disse: “Não, tem de ser o contrário, você tem de entender que seu nome é maravilhoso. Você não está sendo esperta (risos). Acho que você tem de rentabilizar este nome”. E, então, eu disse: “Eu estou escrevendo um novo romance. Estou começando neste momento a investir nessa história e eu vou criar uma Isaura e eu vou colocar todo mundo dizendo pra ela que o nome dela é maravilhoso (risos). Eventualmente essa Isaura vai ser feliz. Ela não vai escapar a uma tristeza básica porque acho que a realidade não permite que toda a gente escape a uma tristeza básica, mas eventualmente ela vai ser feliz. Então, foi muito engraçado porque isso aconteceu numa livraria, num determinado lugar onde eles têm uma poltrona, eu estava de pé, essa senhora estava de pé e então, no chão, exatamente no lugar onde nós estávamos, foi colocado um autocolante que diz assim: “Aqui nasceu a Isaura”. Então, o povo fica passando por ali e ninguém entende que Isaura é aquela. É a Isaura de “O Filho de Mil Homens”, do Valter Hugo Mãe. Ali, de alguma forma, nasceu aquela personagem, na livraria Bulhosa, em Lisboa.
Mas acho sempre que eu ainda não estou convencido de participar, que ainda habito o mundo, assim, como quem se deslumbra e procura alguma maravilha. Então, fico colecionando oportunidades de encontrar gente conhecida ou desconhecida, mas sempre nessa perspectiva de pensar: “Ah, vale a pena efetivamente existir”.
A Pulga: Como você concilia essa postura de quem apenas olha com a de quem também pertence? Você descobriu na palavra e na literatura um instrumento de acesso como participante do mundo?
Valter Hugo Mãe: Acho que foi muito lentamente porque comecei publicando poesia com 24 anos. E, de cada vez que precisava ler um poema meu, ou simplesmente dizer: “Sim, fui eu que escrevi este livro que está a dois metros de mim” – porque eu não conseguia nem chegar perto, ia morrendo de ataque cardíaco todos os instantes –, eu via toda uma confusão quando escolhi me chamar Valter Hugo Mãe. Ninguém entendia o meu nome de início. Ninguém aceitava como um nome lógico. Sempre tinha uma piadinha. Era muito irresistível chamar-me, por exemplo, a um palco e zoar comigo. Então, durante um tempo, achei que talvez fosse daqueles escritores que teria de criar ausente, assim, quase de não aparecer mais, de não fazer entrevista, não participar em coisa nenhuma. Mas depois, lentamente, aquilo que ajuda é nós percebermos que há uma ou duas pessoas numa plateia de vinte ou trinta pessoas que estava efetivamente escutando e que no fim dizia qualquer coisa como: “Ah, gostei, gostei muito daquele poema, ou do outro poema, ou gosto do título ou gostei da forma como você explicou alguma coisa”. E, paulatinamente, assim, muito devagar, a gente vai se convencendo que vale a pena dizer alguma coisa, que vale a pena algum esforço para uma aproximação. Mas acho sempre que eu ainda não estou convencido de participar, que ainda habito o mundo, assim, como quem se deslumbra e procura alguma maravilha. Então, fico colecionando oportunidades de encontrar gente conhecida ou desconhecida, mas sempre nessa perspectiva de pensar: “Ah, vale a pena efetivamente existir”.
A Pulga: Em “a máquina de fazer espanhóis” (2010), por exemplo, você coloca a questão da vida que se encerra. Há um velho como personagem central. E você já disse em algumas entrevistas que tinha em mente morrer aos 18, 33 ou 40 anos. Queria perguntar o porquê disso. Você acha que a literatura é uma maneira de vencer o tempo, se perpetuando através da palavra?
Valter Hugo Mãe: Eu creio que criei todas essas datas de morte porque achava que morrer era fácil. Eu falei algumas vezes que, quando nasci, tinha um irmão que já estava morto, e o meu pai era bastante tremendista. Era assim um hipocondríaco assustador porque ele achava que morreria quase todos os dias e que todos os dias surgiria um novo câncer inventado especialmente para ele. Então, cresci achando que não existia eternidade alguma, mesmo durante o tempo da infância quando as crianças têm uma ideia muito abstrata da longevidade. Acham que o pai e a mãe vão desaparecer só quando extinguir o Sol. Eu pensei sempre muito ao contrário. Sabia que um irmão meu tinha morrido mais novo do que eu, por isso morrer era uma coisa muito possível. Então, fui construindo as minhas barreiras. Primeiro, porque achava que não chegaria à idade adulta e, por isso, não saberia ser obrigado a trabalhar, a ser obrigado a responsabilidades, não conseguiria tomar conta de nada. Então, achava que provavelmente morreria antes dos 18 anos porque estaria encerrado numa certa infância. Depois, era muito crente e achava que se o Cristo morreu com 33 anos, quem seria eu para morrer mais tarde, para viver mais tempo, ser mais digno? Era muito burro (risos). Então, criei isso assim até antes dos 18 anos. Eu pensei: “Mas, se eu não morrer aos 18, eu com certeza dos 33 não passarei”. E foi inevitável aos 33 eu me lembrar dessa questão. Então, eu fiz uma festa de aniversário. A maior festa de aniversário que fiz até hoje foi quando completei 33 anos. Então, achei: “Mas, se esta festa não for um agradecimento por superar esta barreira, pode ser apenas uma despedida. Talvez eu esteja pra morrer em breve”. Mas foi muito importante, pra mim, assinalar e, de alguma forma, dizer às pessoas que eu gostava delas e escolher as pessoas e trazer as pessoas perto de mim e celebrar a oportunidade daqueles 33 anos. E depois fui fazendo contas e sobrou uns 43 anos. Eu já estava tão habituado a ter uma idade pra morrer que subitamente comecei a pensar nisso. E, enfim, eu acho que, quando fiz 40 anos, escrevi “O Filho de Mil Homens” anunciando a minha frustração de não ter filhos. Já a minha posição era outra. No fundo, já não estava em causa morrer, mas acho que estava em causa assumir um falhanço, assim, um “falhei em absoluto”. Você sabe que eu acho…
A Pulga: Falhei porque não morri? É isso?
Valter Hugo Mãe: Falhei porque não tive um filho, falhei porque não cumpri os sonhos mais normais e óbvios. Você sabe que eu acho que a gente fica sonhando ser escritor porque não encara os melhores sonhos da vida e os melhores sonhos da vida são os sonhos de toda a gente; é o ter alguém, o encontrar uma casa com uma cortina amarela bonita e ter dois, três filhos. E então só sonha ser escritor ou só dedica todo o tempo à escrita ou à arte quem está completamente errado. Porque o certo é uma coisa muito mais normal e muito mais acessível a toda a gente. Então, acho que quando estabeleci essa morte aos 40 anos, no fundo estabeleci a consciência de ter falhado, de ter sonhado tudo errado.
Falhei porque não tive um filho, falhei porque não cumpri os sonhos mais normais e óbvios. Você sabe que eu acho que a gente fica sonhando ser escritor porque não encara os melhores sonhos da vida e os melhores sonhos da vida são os sonhos de toda a gente; é o ter alguém, o encontrar uma casa com uma cortina amarela bonita e ter dois, três filhos.
A Pulga: “Felicidade é se reconciliar consigo mesmo” – é uma frase sua. Agora, nesse estágio da vida, não é o momento de reconhecer que falhou, mas também viver um tempo de reconciliação?
Valter Hugo Mãe: É exatamente essa felicidade possível. É uma felicidade consciente porque felicidade não tem como ser outra coisa. Tudo que escapa à nossa consciência, à nossa sobriedade ou lucidez é um regozijo, é uma coisa da dimensão das crianças. As crianças não são felizes; elas regozijam. Vivem numa espécie de euforia, mas não têm lucidez para perceber nem pra fazer perdurar determinadas sensações ou determinados sentimentos. Então, é um pouco o regozijo dos animais. O meu cachorro ele regozija; ele não é feliz. Então, a maturidade, quer queiramos quer não, traz este ensinamento, esse aprendizado. Passamos a ser capazes de guardar a memória das tristezas sem que isso impeça que possamos investir na felicidade e conquistar momentos de alguma plenitude. Então, acho que não vai haver ninguém que não tenha uma memória de momentos terríveis. Ninguém vai ser poupado a uma dimensão aterradora da vida. A felicidade tem de conter isso também. A felicidade não é a ausência da tristeza. A felicidade é uma consciência e uma capacidade de lidar com essa herança triste que todos nós temos.
A Pulga: Quem está de fora tem a sensação de que você sempre teve essa dimensão de que a felicidade era simples, porque você sempre prestou atenção nas coisas simples.
Valter Hugo Mãe: É, mas eu só aprendi isso agora. Eu só percebi agora que uma cortina amarela em casa é uma dimensão fundamental da felicidade. Uma coisa tão ridícula, mas tão simples que a gente só senta ali. Recebe um amigo, faz um jantar e só sente aquele momento e a gente pensa: “Não é necessário ganhar prêmios, não é necessário ter televisão, seja o que for. Felicidade esteve o tempo todo aqui, tem uma cor (risos) e tem uma gente, não é?” Mas acho que fui estabelecendo essas metas porque achava que precisava de concretizar alguma coisa. Precisava de criar algum tipo de relação de conquista assim: “Ok, eu sou viável, eu paguei as minhas contas, a minha mãe não precisa estar preocupada comigo achando que vou morrer de fome, que não tenho nem roupa, que ninguém vai gostar de mim”. E sabe que acho que hoje não tenho nenhuma data pra morrer? Porque eu acho que deixou de ser importante. O morrer deixou de ser importante porque, de algum modo, as coisas ficaram muito completas. Então, perdurar mais tempo, perdurar menos tempo já não vai retirar de mim esta sensação de plenitude que é sobretudo um modo mental de existir. Não é o ter muita coisa. Não sou um homem rico. A maior parte do dinheiro que tenho, dôo para pagar dívidas de pessoas amigas. Não tenho coisas caras. Se o acaso me matar, já não importa muito porque minha vida já valeu muito a pena.
A Pulga: Na verdade, o que quis te perguntar foi onde o menino meio torto colocava os sonhos?
Valter Hugo Mãe: Colocava no impossível. Então, eu sonhava muito, mas não tinha nem coragem de me direcionar, porque achava que efetivamente era o último dos seres humanos, o menos digno, o menos capaz, aquele que não teria rigorosamente nada pra oferecer a ninguém. Então, achava que ia morrer sozinho, virgem, feio, pobre, cedo e burro.
A Pulga: Estava errado (risos). Ainda bem. Não, é que a felicidade…
Valter Hugo Mãe: Mas é que qualquer coisa…
A Pulga: A felicidade, então, é a virada. Aliás, a maturidade é a virada pra felicidade possível, não?
Valter Hugo Mãe: Exatamente. A maturidade é o momento em que pensamos assim: “Não, calma, eu vim desse menino. Esse menino está algures em mim esperando crescer”. Mas a consciência permite-me pensar: “Não, seria até ingrato da minha parte, né?”. Eu não posso cultivar tristeza, porque eu não tenho nem esse direito.
Eu só percebi agora que uma cortina amarela em casa é uma dimensão fundamental da felicidade. Uma coisa tão ridícula, mas tão simples que a gente só senta ali. Recebe um amigo, faz um jantar e só sente aquele momento e a gente pensa: “Felicidade esteve o tempo todo aqui, tem uma cor (risos) e tem uma gente, não é?”
A Pulga: Em algum momento da sua literatura, você aponta que a gente não pode ser o mesmo, que é inclusive um perigo para o escritor ser o mesmo sempre. O que te motiva a mudar, então? Que escritor você ainda quer ser? Qual é o próximo ponto?
Valter Hugo Mãe: É cada vez mais difícil, é cada vez mais angustiante nesse sentido olhar para aquilo que eu já escrevi e pensar o que é que eu posso acrescentar, não é? Como é que eu posso apresentar um novo romance e meus leitores não me dizerem: “Valter, você já contou isso pra nós. Vá fazer outra coisa. Vá aprender a cozinhar. Não vale a pena”. Então, é uma oficina de todos os dias e depende muito de decisões, porque nós somos, por natureza, seduzidos por aquilo que já conhecemos. A gente sente uma segurança por determinados caminhos que já percorreu. E é muito mais fácil construir em cima de conceitos que já reconhecemos. O que acontece comigo é que, constantemente, quando quero começar um romance, deito tudo fora. Estou constantemente a tentar fora. Passo meses construindo alguma coisa, tomando notas e no momento em que começo às escrever é que descubro meu tempo e penso: “Ok, eu vou”. É o momento exato. Escrevo, chego à páginas 30, 40, 50 e penso: “Não é isto. Isto até me agrada muito, até me faz bem escrever esta história, até me alegra escrever no sentido do ego do termo”. As frases podem ser lindas. Há momentos poéticos que me cativam muito e que me chamam a atenção, mas aquilo é só uma espécie de emanação de outro romance qualquer, assim, uma mesma energia, uma mesma estética. E então é o momento de deitar fora e de pensar: “Ok, Valter, coragem. Vamos regressar ao ponto da pobreza absoluta e enriquecer um texto que seja todo ele uma surpresa também pra mim”. Eu não sei como subitamente as coisas comparecem. O fundamental é ver esta coragem de a gente não se deixar vencer pelo ego, não se deixar vencer pela facilidade, ou seja, seria muito mais fácil aceitar imediatamente alguma coisa que até está bem escrita e que até vai agradar os leitores que gostaram muito de “a máquina de fazer espanhóis” ou de “O Filho de Mil Homens”. Provavelmente seria um livro de sucesso e tudo isso. É muito importante a gente pensar: “Não, não está em causa você ficar imediatamente feliz com isto e ficar sossegado. Está em causa descobrir uma forma que não seja óbvia”.
A Pulga: Esta preocupação de renovação é permanente?
Valter Hugo Mãe: É, é uma preocupação dos dias e das noites. É uma das coisas que me acorda no meio da noite.
A Pulga: “A máquina de fazer espanhóis” é esse livro de se encerrar. Já “O Filho de Mil Homens” é um livro mais esperançoso, de alguma maneira. Como você trabalha o tom dos seus livros?
Valter Hugo Mãe: Fico oscilando. Normalmente um livro mais difícil ou um livro um pouco mais aberto, depois um livro mais difícil, eventualmente um livro mais aberto. Neste momento, eu estaria a trabalhar num livro um pouco mais aberto. Mas meus livros todos são mais esperançosos dentro dum universo muito terrível. As minhas figuras todas elas sofrem muito e todas elas têm um percurso agreste. Então não consigo deixar de fazer as coisas assim porque não consigo deixar de ver o processo da vida como uma conquista muito profunda. A gente precisa mesmo aprender a passar pelas agruras. Não consigo que os meus livros não tenham uma relação com a morte, com a perda, com a esperança, às vezes, mais eufórica. Acho que tudo que fica no meio-termo é uma mediania aborrecida. A vida entra sempre muito pela intensidade. Pra mim, perder é perder muito e ganhar é ganhar muito. As pessoas simbolizam sempre isto pra mim. Significam sempre muito. Pessoas que vão embora e as que chegam são sempre importantes. E a literatura não usa a mediania. Então, tudo fica muito mais aguerrido e muito mais explícito. Nós, enquanto leitores, quando encontramos um texto assim, relativamente extremado nas posições que toma e naquilo que conta, é muito mais fácil, a partir até das caricaturas, sabermos onde estamos e a que distância estamos de uma tristeza profunda ou de uma felicidade absoluta. Só sei funcionar assim. É muito o jeito que sou, assim, de intensificar as coisas. É a única forma de o cotidiano adquirir alguma magia e de o tempo ser capturado. Nós só capturamos aquilo que foi intenso. Toda a mediania vai desaparecer da nossa memória. Parece-me que um dos sentidos da vida tem de ser a intensificação, porque a grande questão e o grande desafio de todos nós é lembrar.
E a vida depois pragmatiza tudo. A literatura é o contrário. A literatura é o contrário do pragmático. A literatura faz uma fotografia dum instante e precisa explicar esse instante, porque não suporta que aquela frase seja dita daquela forma.
A Pulga: Quando entrevistei Ariano Suassuna, ele disse que, embora numa condição muito difícil, seus personagens não podiam ser vulgares, deviam ter um sentido. É uma ideia de construção de personagem. Por um lado, existe a reflexão sobre a vida que você faz, mas, de outro, há o trabalho de sentar diante do computador para escrever efetivamente. Então, volto um pouco para a pergunta inicial: onde você encontra humanidade nas coisas cotidianas e como você transporta isso para dentro de seus textos?
Valter Hugo Mãe: Antes de mais, o Ariano Suassuna é uma maravilha. Temos muita saudade dele. E depois, na verdade, na literatura, ninguém consegue ser vulgar a menos que o autor seja distraído e não saiba potenciar uma figura. O Caetano Veloso tem muita razão quando diz que “todos nós, vistos de perto, podemos ser um monstro, podemos ser grotescos”. Todos nós, vistos de perto, somos intensos, somos alguma coisa de muito especial. E a literatura faz isso. A literatura mostra-nos as figuras muito de perto, eventualmente até no recôndito dos seus próprios pensamentos, do seu mundo secreto e inconfessável. Por isso é que nós nos compadecemos tanto com as personagens e por isso é tão possível um processo de identificação. A gente pode identificar-se até com um assassino porque conhecemos as motivações. A literatura é muito perigosa, porque poderia desculpar toda a gente (risos). Temos de ter muito cuidado com a literatura nesse sentido. Mas encontro aquilo que me motiva, que me deixa subitamente energizado literariamente e com alguma urgência para escrever uma história muito numa disciplina do silêncio. Sou muito impressionado pelas pessoas caladas, porque sempre elas contêm uma explosão prestes a acontecer. E, por vezes, alguma coisa que as pessoas podem dizer sem se aperceberem ou sem conferirem um conteúdo demasiado consciente ao que disseram. Posso dar um exemplo muito acabado. Ontem mesmo, uma moça disse pra mim várias coisas, e ela estava falando lentamente, mas falou várias coisas e no meio disso, ela disse: “A minha mãe morreu. Então, eu viajei com a minha avó”. Fiquei parado naquela frase. “A minha mãe morreu. Então, eu viajei com a minha avó”. A gente esteve aqui, e ela ficou falando. Fiquei parado naquela frase: “A minha mãe morreu”. E eu pensei assim: “Não deve haver rigorosamente frase nenhuma mais triste neste momento do que ‘A minha mãe morreu’”. E isto, digo eu, porque não tenho filhos. Então, a moça ficou falando e eu fiquei conjeturando: “Qual seria a expressão mais triste, absolutamente mais triste de alguém usar? Eventualmente, ‘o meu filho morreu’”. Isso é muitas vezes o que me leva à literatura. É ficar com aquela energia e pensar: “Imagina que eu poderia parar o discurso daquela moça, a vida daquela moça, fazer um recuo, parar em cima daquela frase da mãe que morreu e extrair de toda aquela frase a importância que ela merece”. Aí é o livro. Aí está um livro inteiro no fundo, pousado em cima daquela frase do modo pragmático com que ela teve de dizer aquilo. Porque a vida depois pragmatiza tudo. A literatura é o contrário. A literatura é o contrário do pragmático. A literatura faz uma fotografia dum instante e precisa explicar esse instante, porque não suporta que aquela frase seja dita daquela forma.
A Pulga: Você já disse que sua mãe te mandava ir ao colégio porque seria uma oportunidade de guardar as coisas que você tinha na cabeça. E você achava isso importante porque permitia fazer a lista de palavras de que você gostava, como pirilampo.
Valter Hugo Mãe: Pirilampo é a mais bonita.
A Pulga: Ainda é?
Valter Hugo Mãe: Ainda é.
A Pulga: Então, penso que há escritores que começam a contar histórias por uma ideia, outros pela história em si e ainda outros por raiva, por exemplo. No seu caso, me parece que é pela palavra. É esse o início de tudo?
Valter Hugo Mãe: É a palavra, encontrar a expressão. Quando tenho vários livros em mente, e tenho sempre várias histórias, algumas eu vou adiando há dez anos. A história que ganha, no momento em que eu sento, é aquela que subitamente oferece a sua própria estética; é aquela que diz a sua própria tonalidade estética e me diz assim: “Valter, pense nessa frase”. Não é estranha. Não é, ao mesmo tempo, bonita, incômoda. Ela não deixa você necessitado de uma explicação. Então, corro atrás. O que acontece muitas vezes é que, depois, essa primeira frase não é a primeira frase do romance. É a primeira frase do romance para oficina, pra mim, mas depois, muitas das vezes, no meio do romance, eu crio um primeiro capítulo surpresa. É muito comum, no meu processo de escrita, o primeiro capítulo ser escrito no meio do livro, não no fim, mas no meio do livro. Quando estou bem no meio do livro, eu penso: “Não, eu preciso antecipar algumas coisas nesta história”. Até porque algumas frases, algumas das melhores frases surgem depois e eu penso: “Ah, o primeiro capítulo deste livro então é este”. Eu nunca disse isto a ninguém, mas, se você fizer um exercício de ver o segundo capítulo de todos os meus livros, provavelmente você vai perceber que é um excelente primeiro capítulo (risos). Se fosse efetivamente o primeiro capítulo, eu poderia criar uma tonalidade um pouco diferente na leitura. O leitor entraria na história num momento em que não seria o momento mais interessante; seria talvez um momento muito intenso, muito forte. Em “a máquina de fazer espanhóis”, por exemplo, o segundo capítulo era o primeiro capítulo por quase todo o livro. Começa com aquela ideia terrível de que, com a morte, também o amor devia acabar. Essa foi a primeira frase do livro. Foi por causa dessa frase que fui atrás do livro e pensei – não suportei essa frase – em como justificar aquilo que perdura. No fundo, como criar uma ideia de completude perante a morte? “O Filho de Mil Homens” é a mesma coisa. Eu começava com a história da anã, que era prévia e é prévia em absoluto. Ela conta o nascimento do Camilo, que depois vem a ser adotado por Crisóstomo. Mas, no livro, conto primeiro a história do Crisóstomo, e só depois é que nasce o Camilo.
A Pulga: Você cria uma antessala.
Valter Hugo Mãe: Eu crio uma antessala. Há qualquer coisa em mim que, ali no meio da escrita do livro, me possibilita pensar com outra lucidez. A gente não fica sabendo logo as coisas do livro. Aliás, eu não sei nada quase. Creio que vejo uma imagem e ela está embaçada. E a escrita do livro é uma espécie de processo de nitidez em que vou conquistando a possibilidade de ver. É muito grato escrever o livro exatamente porque é sempre um processo de descoberta. E ele está sempre em causar surpresa porque, se não estivesse em causar surpresa, eu não conseguiria escrever ou não vou ter vontade de escrever. Então, parto por um livro, por alguma coisa que eu vejo, mas só vejo muito mal.
Costumo dizer que a literatura é um estudo, mas é um estudo que, ao invés de ser feito no exterior, é sobretudo feito no interior. É um processo de intensificação do pensamento; é uma meditação longa.
A Pulga: Você tem algum método para encaixar todos os capítulos ou é algo muito fluido também?
Valter Hugo Mãe: Normalmente a frase vem relacionada com o assunto se eu quero muito discutir alguma coisa. Quando essa imagem surge, está dizendo assim: “Valter, se você conseguir clarear esta figura, você vai estar pensando sobre a violência doméstica, sobre a paternidade, sobre o abandono ou sobre a felicidade, sobre a terceira idade, na desumanização sobre a solidão absoluta, sobre o recôndito, sobre estar longe…” Então, aquela imagem seduz também porque vem ao encontro dessas histórias que quero contar, que – no fundo, quando eu digo que são histórias que eu quero contar – não são mais do que assuntos que quero explorar. Costumo dizer que a literatura é um estudo, mas é um estudo que, ao invés de ser feito no exterior, é sobretudo feito no interior. É um processo de intensificação do pensamento; é uma meditação longa. Sei que há muita coisa da vida sobre a qual quero pensar dessa forma, sobre a qual quero meditar. E então vou guardando essas impressões do que quero, do que vou adiando. Em dados momentos, é um pouco urgente. É tão urgente que acordo muitas vezes ao meio da noite com uma imagem. Penso: “Eu preciso clarear esta fotografia; eu preciso clarear esta coisa, de ver”.
A Pulga: Você já mencionou que a maternidade é o mais próximo do humano – isso de se partir em outro. Nesse sentido, quando você adota o nome Mãe, cria uma chancela para a sua literatura, que é muito interessada no homem e nessa estética da humanidade. Gostaria que você comentasse um pouco essa relação com a maternidade – ou com a paternidade. Esse tema causou inclusive certo alvoroço na Flip, em 2011 (risos).
Valter Hugo Mãe: Você sabe que eu não tinha consciência concreta disso? Sabe que quando eu criei o nome Mãe, eu achava que a experiência extrema da existência tem de ser a maternidade. O homem fica no lado pobre da humanidade e da existência. Mas eu não estava consciente de que isso pudesse, de repente, reverter para uma espécie de acusação contra mim próprio. Era um pouco isso que falava há pouco. Os meus quarenta anos foram a celebração da frustração. Foi assim: “Ok, errei completamente. E estava na cara qual era o caminho. Eu até criei esse nome. Mas como é que eu não percebi que eu devia ter tido filhos? Como eu acabei ou como eu fui acabar, de todas as relações, deixando as meninas irem embora sem nenhuma ter engravidado, não é?” Não sei se foi uma prudência, se foi um estar sempre interessado ou deslumbrado com a arte, deslumbrado com a literatura, que eu achava que ter filhos poderia ser uma coisa para mais tarde ou que ter sobrinhos era igual a ter filhos – o que é ridículo. Ter sobrinhos é maravilhoso, mas é muito diferente. Então vejo com alguma perplexidade de que eu próprio me condenei.
A Pulga: Qual é essa condenação?
Valter Hugo Mãe: Não, eu fico contente. Você sabe que eu acho que, com o tempo, eu fico grato que os livros sirvam pra alguma coisa. É muito absurdo dizer-se isto e é muito perigoso.
A Pulga: Parece que os livros servem, no seu caso, para contar uma história que nem você sabia.
Valter Hugo Mãe: É, mas é isso. Vivo fascinado por escrever mais porque aprendo e porque aprendo sobre mim e porque aprendo sobre o mundo e porque os livros me curam. Se eu não escrevesse livros, eu ia ser muito neurótico, psicótico, frequente em terapia. Acho eu que nunca fiz terapia porque faço muita literatura (risos). Mas essa ideia de os livros serem úteis é uma ideia perigosíssima, que muitos artistas vão afastar do seu universo, mas que eu tenho verificado com muita gratificação, assim.
Foi assim: “Ok, errei completamente. E estava na cara qual era o caminho. Eu até criei esse nome. Mas como é que eu não percebi que eu devia ter tido filhos?”
A Pulga: Então, os livros são filhos? É isso?
Valter Hugo Mãe: Os livros já são filhos, os livros ocupam espaços vazios. Os livros nunca vão compensar exatamente o que nos falta, mas criam uma ilusão bastante grata. Eles criam uma ilusão bastante convincente com a qual conseguimos seguir sobrevivendo com uma qualidade de vida bastante admirável. Por isso acho que quem não tem filhos precisa urgentemente de escrever um livro ou pintar um quadro, cantar umas canções no karaokê, qualquer coisa, mas a arte existe por uma compensação absurda, mas absolutamente maravilhosa.
A Pulga: Quem foi o primeiro autor brasileiro que você leu?
Valter Hugo Mãe: Ah, creio que foi Jorge Amado, que é famosíssimo, importantíssimo em Portugal. Foi muito, muito adorado em Portugal durante décadas e segue sendo. Mas meu primeiro contato vem das telenovelas, vem da música. Eu lembro muito da Gabriela (novela da TV Globo de 1975) quando era muito pequeno. Lembro-me do assombro de vermos a Sônia Braga seminua e de agradecermos a Deus que a Sônia Braga existisse porque ela era a mulher dos sonhos de todas as crianças do mundo. Eu acho até que aumentou os índices do lesbianismo em Portugal, aqui também deve ter aumentado. Mas todo mundo passou a gostar mais de mulher depois que a Sônia Braga fez a Gabriela. Então, isso influiu muito no modo como a gente vivia, no modo como se pensava, porque Portugal vinha duma ditadura moralista, duma ditadura conservadora. Não estava em causa simplesmente um domínio político, econômico, do bem-estar; estava em causa sobretudo uma manipulação das mentalidades que fazia com que o país fosse muito fechado, muito antigo. E a cultura brasileira era uma espécie de levantamento do pó em que subitamente o próprio país, Portugal, era uma imagem muito embaçada. Subitamente o povo começou a querer enxergar melhor. Quando cheguei à Flip, já havia estado no Brasil algumas vezes, mas pela primeira vez era com livros publicados aqui. Foi o primeiro evento que tive como autor verdadeiramente publicado. Achava que ia correr bonito, que ia ser muito agradável, assustador, estar perante uma plateia tão grande, mas eu ia ser esquecido em 45 minutos, porque estava o João Ubaldo Ribeiro, estava o Ignácio de Loyola Brandão, estava presente o Antonio Candido, e Elza Soares ia fazer um show de abertura com José Miguel Wisnick e com Celso Sim. Não ia ter, não estava em causa ter um momento propriamente meu; estava em causa eu ir assistir. Eu sabia que estava participando, mas eu estava sobretudo convencido de que assistiria. Então, vejo aquilo como uma coisa da dimensão do fenômeno, que não tem explicação.
Estava em causa sobretudo uma manipulação das mentalidades que fazia com que o país fosse muito fechado, muito antigo. E a cultura brasileira era uma espécie de levantamento do pó.
A Pulga: E, hoje, como é a sua relação com o Brasil?
Valter Hugo Mãe: Hoje eu tento normalizar as coisas. Quero muito que as pessoas percebam se vale a pena gostarem de mim pelos livros. Continuo muito comovido. Eu comovo-me com muita facilidade e com muita coisa que me acontece no Brasil. Mas eu queria muito que as pessoas justificassem a minha presença por causa dos livros. E foi isso que eu pedi. Assim que saí da Flip, recebi convites para todas as semanas do ano. Prometi a mim mesmo que só regressaria ao fim de um ano, no mínimo. Nas entrevistas que dei, eu disse: “Queria muito que as pessoas lessem os livros e decidissem daqui a um ano se eu devo voltar ou não”. Então volto e, sempre que volto, penso nisso. Penso se vou encontrar leitores, se valeu a pena. Se não tiver ninguém lendo, então não posso ficar reclamando uma atenção.
A Pulga: Gostaria que você falasse da influência do também escritor português José Saramago (1922-2010) no seu trabalho.
Valter Hugo Mãe: O Saramago teve muita importância, não só como autor mas como homem. Vinha até pensando nisto estes dias, porque, quando regressar a Portugal, vou apresentar um livro dele. Desde que ele faleceu, existe um vazio no discurso e na conversa em Portugal porque ele era um participante no diálogo. Nunca estava em causa concordarmos exatamente com ele; estava em causa a boa-fé da sua participação. A importância de Saramago vem disto, e a obra dele tem a importância da participação de boa-fé num diálogo com o coletivo dos homens. Isso é uma marca muito visível no que faço também ou na forma como habito o mundo. E ele faz uma diferença abissal porque efetivamente sabia pegar nos assuntos. A cada momento, em cada escândalo político, social, ele incomodava. Isso é muito admirável porque ele podia ficar lá no seu palácio, na sua ilha quase privada, com sua magnífica esposa e curtir a sua própria literatura e os seus amigos e os seus jantares, mas ele tinha uma urgência em participar. Então, era um incômodo constante. A verdade é que hoje, depois da morte dele, não temos nenhuma figura que esteja verdadeiramente à altura e que chegue e que faça chegar uma voz que, ao mesmo tempo, seja voz dum homem informado, mas que pertença também a toda a população, sem distinção.
A Pulga: Vou te fazer uma pergunta que tem a ver com o Saramago. Para você, o que é Deus? Você já disse que acredita em Deus em alguns dias da semana…
Valter Hugo Mãe: Eu acho que Deus, se você quiser, é uma obrigação de acreditarmos uns nos outros. Não sei se Ele existe, mas é uma obrigação de acreditarmos uns nos outros e de construirmos um mundo em que seja possível acreditarmos uns nos outros. Essa obrigação existe. Então, Deus precisa de começar por ser isso: essa obrigação de sermos de confiança.
A Pulga: Pergunto isso, porque Saramago era ateu. Já entrevistei escritores em que o acreditar no outro está muito vinculado a Deus, e esse Deus tem um lugar muito definido na vida das pessoas. No documentário “José e Pilar”, sobre a relação de Saramago com a esposa Pílar del Río, é possível perceber um escritor ateu, mas profundamente crente no ser humano, em suas potencialidades. Essa descrença em Deus e essa crença no ser humano parecem quase uma coisa antagônica.
Valter Hugo Mãe: Como pode um ateu ter tanta esperança, não é? Mas é que a humanidade já deu provas da sua maravilha…
A Pulga: Assim como já deu provas da sua barbárie…
Valter Hugo Mãe: Exatamente, mas prefiro continuar a acreditar que o caminho é uma melhoria, que o caminho é melhorando. Existe aquele ditado incrível que diz: “Hora a hora, Deus melhora”. Na verdade, a humanidade vai caminhando. Se você pensar por mais tremendo que o mundo seja hoje, o mundo nunca foi tão justo. Nunca tanta gente viveu com uma certa redenção. Nunca tanto como hoje houve informação, saúde, escola, acesso. A mulher nunca esteve tão perto de ser respeitada. As classes sociais nunca estiveram tão perto de serem rebatidas para que não exista hierarquização. Se falta fazer muito? Falta. Se o mundo continua sendo nojento? Continua. Se o homem continua capaz de atrocidade? Continua. Mas que a humanidade melhora, eventualmente melhora, acho que isso é muito patente. A inteligência nos prova que o caminho é melhorando.
Ah, então se não vale a pena, não escreve, não faz, não sai, não come e migra pra uma lua, pra outro planeta. Deixa construir quem quer construir. Deixa acreditar quem quer acreditar.
A Pulga: Pois é, sua literatura vai também na contramão dessa pós-modernidade meio descrente…
Valter Hugo Mãe: Ah, estou careca dessa pós-modernidade cética, descrente, blasé, que fica duvidando de tudo. Ceticamente posta acima de tudo, como se o cara lá fosse iluminado o suficiente pra perceber que não vale a pena. Ah, então se não vale a pena, não escreve, não faz, não sai, não come e migra pra uma lua, pra outro planeta. Deixa construir quem quer construir. Deixa acreditar quem quer acreditar. Se você não acredita, então arranja modo de acreditar. Até que no momento da morte, toda a gente acredita em alguma coisa. No momento da morte toda a gente vai lamentar o mesmo: não ter amado mais, não ter sabido criar um afeto inequívoco com mais gente. Então por que não ir começar mais cedo, criando uma relação mais afetiva e mais respeitosa? Estou um pouco farto desta sociedade do ódio, do ódio fácil, que xinga fácil, que usa o Facebook pra detonar fácil. Vê uma notícia, tem aquele cabeçalho gigante, parece uma coisa errada, todo mundo xinga imediatamente, mas ninguém leu a notícia. Ninguém sabe se aquilo vem até duma imprensa respeitosa, duma imprensa prestigiada, se aquilo é verdade, se é mentira. Teve um caso, por exemplo, que passou na Península Ibérica de um político que teria dito que as mulheres deviam regressar urgentemente para o tanque. Então, todo mundo ficou replicando aquela mensagem, replicando aquela notícia do jornal daquele político. O político foi detonado. Ninguém percebeu que aquela notícia não era uma notícia. Era um boato. O homem nunca disse. Aquele jornal não existia. Foi um experimento. Ninguém checou se nas Astúrias, tinha um jornal chamado não sei quê das Astúrias. Não tem esse jornal. Foi alguém que criou, botou a foto do homem. Você viu uma coisa absurda do Steven Spielberg sentado em cima de um dos dinossauros do Jurassic Park? Tem aquele filme que ele fez. Então, o Spielberg está sentado em cima dum dinossauro teoricamente abatido. Correu a internet há um meio ano a fotografia do Steven Spielberg com uma notícia dizendo: “Spielberg mata animal em vias de extinção”.
A Pulga: Mas um dinossauro em vias de extinção?!
Valter Hugo Mãe: O povo todo replicando e dizendo: “Ah, é um filho disto, é um filho daquilo. Como é que ele é capaz de matar animais que estão em vias de extinção?”. Ninguém olha pra fotografia e vê assim: “Espera aí: Spielberg não pode matar um dinossauro”. Isso é do filme que ele fez que toda a gente viu. Como é que 20 anos depois – ou 15, nem sei de quando é o filme – as pessoas são tão estúpidas de se deixarem vencer pelo ódio tão rapidamente que não percebem nem que estão a falar de um dinossauro? É um filme. Então, eu estou muito contra isto. No meu Facebook, não admito muito o exercício do ódio. Pra mim, o que não estiver no sentido da construção está completamente errado. Precisa de fazer terapia e precisa de encontrar uma paixão.
A Pulga: Gostaria de terminar com essa questão da felicidade e da esperança que está presente na tua obra. Me permita fechar um ciclo: você fala do menino que não se achava viável e, hoje, você vê seu trabalho ganhar mundo, canta numa banda, apresenta um programa de TV. Talvez a maturidade seja olhar para essa felicidade do possível, da construção, não?
Valter Hugo Mãe: É verdade. Em “O Paraíso São os Outros”, a narradora até diz isso: “A maturidade, no fundo, é a capacidade que temos de corrigir”. Só cresce quem corrige. Crescer não é aumentar de tamanho, ficar mais velho, é corrigir. A gente só cresce quando corrige. Por isso, a maturidade é exatamente isso: é quando nós soubermos que é preciso corrigir; neste sentido, é preciso construir. Se não estivermos construindo, somos imaturos, somos bobos.
A Pulga: E é uma construção com afeto, que se afeta, que não é distante.
Valter Hugo Mãe: Exatamente, que liga, que participa, que se implica.
Grazielle Albuquerque
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Graziella,
Essa entrevista é maravilhosa. Sensível, intensa. Dessas que a gente lê e fica recomendando para todo mundo. Ela foi bem conduzida e o Valter Hugo Mãe, bom, dispensa comentários não é? Obrigada pela partilha, foi incrível me encontrar com essa entrevista.