Política

O Brasil encaretou?

Marco Aurélio em Vale Tudo, novela de Gilberto Braga de 1988.

Marco Aurélio em Vale Tudo, novela de Gilberto Braga de 1988.

 

Hoje é o grande dia. Está na hora de decidir o 1o turno das eleições presidenciais de 2014. Dentre as reviravoltas dessa campanha, o que realmente me causou estranhamento foi a temática conservadora das discussões: criminalização do aborto, redução da maioridade penal, homofobia… Talvez a representação mais caricata e ignóbil desse “fenômeno” tenha acontecido no debate da rede Record do domingo, dia 28 de setembro, em que o candidato Levy Fidelix fez uma comparação escatológica entre o aparelho excretor e reprodutor para falar dos gays. As declarações causaram rumor, contudo o espantoso é que elas não são um ponto fora da curva.

 O resultado desse embate mais direto é um maior posicionamento também por parte do eleitorado. A cobrança é mais explícita dos dois lados. A tendência é que não se deixe mais o assunto ficar debaixo do tapete.

Há na pauta do amplo debate político um movimento duplo: um que tenta barrar a ampliação da cidadania e outro que vai além e propõe o retrocesso. Por baixo das tensões relativas ao casamento homoafetivo, a descriminalização do aborto, as pesquisas com células tronco e outros temas que compõem as conquistas dos direitos civis de primeira e quarta gerações, existe ainda os que querem retroceder. A redução da maioridade penal talvez ilustre bem os ataques ao que já existe. Ou seja, a questão aqui não se resume ao incomodo de mudar o estabelecido, de ir adiante, é mesmo o desejo de voltar, de cercear direitos. Embora sejam paralelos, na prática esses movimentos se confundem e por vezes se somam. É atemorizante ver esse quadro desenhado em uma democracia ocidental do século XXI, distante que julgamos estar dos regimes que tutelam a vida privada.

Muitos dos temas que estão em pauta hoje, sobretudo a discussão sobre o aborto e o casamento homoafetivo, surgiram com mais força nas eleições de 2010. Se naquele período alguns candidatos ficaram em cima do muro evitando se comprometer, hoje a tomada de decisão é mais incisiva e polarizada. O movimento de Marina Silva à direita e a voz em coro dos candidatos fundamentalistas que compõem à bancada religiosa, em contraponto a campanha afirmativa do Psol, levaram a uma reação à esquerda por parte do PT. O resultado desse embate mais direto é um maior posicionamento também por parte do eleitorado. A cobrança é mais explícita dos dois lados. A tendência é que não se deixe mais o assunto ficar debaixo do tapete.

Poderíamos fazer uma avaliação estritamente eleitoral da questão. Mas, ampliando o quadro, vendo as eleições mais como uma amostra do que como um fenômeno a parte, é de chamar atenção a manifestação de vozes tão conservadoras. Vale ressaltar que elas só estão presentes no discurso político porque há um estrato social da qual se originam. E isso é relevante não só por seu conteúdo, mas também pela novidade na forma atual em que essas vozes se expressam. De um lado há uma institucionalização desses grupos de interesse através do jogo político, de outro eles aparecem nas ruas se mostrando em marchas, passeatas e outros instrumentos típicos dos movimentos socais. Existe aí todo um universo para ser estudado, mas sem dúvida muito do que ecoa na arena pública está nas manifestações de rua e na rede. Em caso de dúvida, é só olhar o teor dos comentários em qualquer portal de notícias para se confirmar a existência desse conservadorismo extremo.

No Brasil de 2014 subverte-se a ordem: os candidatos mais pró-mercado, que bradam a liberdade econômica, são verdadeiros cães de guarda da moral e dos bons costumes da vida alheia.

Fato é que há tempos não temos de maneira incisiva um bloco tão moralista bradando palavras de ordem. Ainda que por razões mais instrumentais ou mesmo por cinismo, o desejo de “aparecer bem na foto” dava um tom mais polido à fala dos reacionários de plantão. Da década de 1980 para cá, o discurso oficial era mais afirmativo de direitos do que o contrário. Nesse sentido, lembro uma frase do Nirlando Beirão sobre a visão libertária e provocativa que se tinha da política nos anos de abertura. A Constituição de 1988, mesmo não sendo propriamente uma Carta de ruptura, é prova inconteste de que estávamos numa curva ascendente de afirmação da cidadania. Hoje, o que vemos é o contrário.

É claro que a bancada evangélica tem peso nesse quadro, mas olhar só para essa variável é reducionista. Há mais para se prestar atenção. Se já não fosse suficientemente sério ter ditames religiosos interferindo com tanta força nos direitos civis, existem entraves de outra ordem. Não vamos esquecer, por exemplo, que o Brasil foi o último país da América Latina a criar a Comissão da Verdade e que sustenta juridicamente a legitimidade da Lei da Anistia. Estes são exemplos de desafios diferentes, mas que talvez tenham a mesma essência no que diz respeito a dar contornos mais definidos ao exercício da cidadania e ao que se espera das instituições democráticas. Posições sobre os rumos de economia podem variar de acordo com determinadas cartilhas políticas, a garantia de direitos não. O curioso é que este é, essencialmente, um elemento da doutrina liberal clássica. No Brasil de 2014 subverte-se a ordem: os candidatos mais pró-mercado, que bradam a liberdade econômica, são verdadeiros cães de guarda da moral e dos bons costumes da vida alheia. É com se quissesem liberar o Estado e estatizar constumes, numa inversao perversa e perigosa.

Dizer que o Brasil “encaretou” é uma armadilha fácil. É nesse ponto que me parece viável acreditar que se existe um bloco gritando palavras de ordem moralistas, há outro que também se organiza a reivindicar direitos. Essa tensão é necessária para se avançar.

Dizer simplesmente que o Brasil “encaretou” é uma armadilha fácil. Embora essa frase tenha ressonância, é preciso lembrar que não temos um Brasil, mas vários. É nesse ponto que me parece viável acreditar que se existe um bloco gritando palavras de ordem moralistas, há outro que também se organiza a reivindicar direitos. E, incomoda que seja, essa tensão é necessária para se avançar. Em meio ao embate, fico com várias imagens de “Vale Tudo”, novela do final dos anos 1980, na cabeça. Em sua primeira e última cena, Gilberto Braga colocou um michê no roteiro. Se Odete Roitman era a própria representação da elite reacionária, em outra ponta o enredo trazia o primeiro casal lésbico da telenovela e terminou com o antagonista Marco Aurélio fugindo num jatinho e dando uma banana para ao país. Estava tudo lá, em cores fortes, sem causar muito assombro. Há 26 anos era possível ver isso no horário nobre, na maior emissora do país. Hoje, apesar dos avanços e do famoso beijo gay, ainda existem tantos que mal dão conta de tramas cheias de pessoas de “boa família”.

Grazielle Albuquerque

Grazielle Albuquerque é jornalista, cientista política e arengueira. Criou a Pulga ainda na faculdade com um grupo de amigos. Hoje revive a meninice e a aventura da escrita. É viciada em história, política, café e música. Cultiva o bom humor e tem um quarto azul.

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