Literatura

A casa da literatura é lá fora

Patrick Modiano, escritor, vencedor do Nobel de 2014

Patrick Modiano, escritor, vencedor do Nobel de 2014

 

Como três grandes escritores elaboram em seus trabalhos o jogo entre dizer e esconder.

Os escritores Scott Fitzgerald, James Salter e Patrick Modiano reforçam uma ideia que tenho considerado cada vez mais instigante: a literatura é, em verdade, tudo o que acontece fora dela, mas só poucos conseguem contaminar essa empreitada com o jogo preciso entre opacidade e transparência.

A escolha dos autores não foi ao acaso, embora muitos outros possam ser elencados. O francês Modiano, recém-Nobel de 2014, e os outros dois norte-americanos fizeram de suas produções literárias o reino primordial e consciente do não-dito.

É assim, por exemplo, na trama que conduz o narrador Nick Carraway, um jovem vendedor de títulos de crédito em Wall Street, à vida do milionário espúrio Jay Gatsby no romance “O Grande Gatsby”, que Fitzgerald (1896-1940) lançou em abril de 1925.

A escolha dos autores não foi ao acaso. O francês Modiano e os outros dois norte-americanos (Fitzgerald e Salter) fizeram de suas produções literárias o reino primordial e consciente do não-dito.

O senhor Carraway aluga uma casa simples, US$ 80 ao mês, ao lado da mansão de Gatsby, aceita aproximá-lo da prima casada Daisy, com quem o ‘empresário’ teve um affair no passado, e acaba vendo, após discussões e um atropelamento, todas aquelas traições amorosas degringolarem para um assassinato seguido de suicídio.

Há múltiplas interpretações para o livro, porque nas suas 218 páginas pouco é conhecido. A começar pelo sujeito que conta a história em primeira pessoa. Quem é Nick? O rapaz que considera a si próprio reservado, consciencioso, honesto?

Uma autodescrição que me parece pouco confiável, ainda que nada de estrondoso diga o contrário. Mas a relação bastante nublada que ele tem com a esportista Jordan Baker abre portas para um Nick que nunca conheceremos.

E quem seria, então, o misterioso Gatsby? O homem cujo sorriso é descrito como parecendo “encarar todo o mundo, a eternidade, e então se concentrava sobre você, transmitindo-lhe uma simpatia irresistível”? Ou seria ainda o indivíduo apaixonado pela fútil Daisy, que transformou sua escalada em direção à riqueza numa tentativa vã de reconquistá-la?

Pela ótica apaixonada de Nick, Gatsby é uma vítima do dinheiro, da imprudência de Daisy e da covardia de Tom Buchanan, o marido dela.

Mas suas tramoias profissionais nunca explicadas por inteiro e a promiscuidade sexual sugerida entre Gatsby e o velho, rico, “melhor amigo” Dan Cody deixam entrever um Jay egoisticamente motivado.

Agora, para a felicidade da literatura, o que temos é essa visão de Nick, limitada por suas fraquezas e paixões. Uma análise do mundo que se dissolve nas mãos do leitor.

Pouco populares, essas partes desconfortáveis, digamos, acabaram sendo ignoradas no filme de Jack Clayton para dar aquele clima todo especial a um Gatsby loiro, bonito e alto vivido por Robert Redford, em 1974. (Mas “O Grande Gatsby” do cinema é bom. Vale assistir.)

Agora, para a felicidade da literatura, o que temos é essa visão de Nick, a um só tempo global e limitada por suas próprias fraquezas e paixões. Uma análise do mundo que se dissolve nas mãos do leitor –junto com o calor que faz ao longo de todo o enredo.

 

ESCURIDÃO

Enquanto os ricos do East Egg fitzgeraldiano bebem campanhe e tomam banho de piscina, o detetive particular amnésico Guy Roland se despede do patrão Hutte e parte numa caminhada noir em busca da própria identidade.

Em “Uma Rua de Roma”, publicado no Brasil em 1986 pela Rocco, Modiano, assim como faz em seus outros livros, joga o personagem principal diante de um abismo que é o passado.

Guy é um nome falso. Seus documentos foram providenciados por Hutte, que o admitiu no negócio de investigações particulares recomendando que ele “pense no presente e no futuro”.

Mas, quando tudo desmorona com a aposentadoria do dono da agência, só lhe resta embarcar no rastro de pistas suspeitíssimas: dois barmen dizem que ele fazia parte da turma de Stioppa de Djagoriew –ou seria hóspede do Hotel Castilles?; na saída de um enterro, persegue um homem que acredita ser o tal russo; na casa do sujeito, para onde é levado após abordá-lo de maneira atabalhoada, acredita ver a si próprio mais jovem numa foto em que um homem qualquer está de braços dados com uma moça.

Assim, durante todo o resto da trama, essas impressões esfumaçadas, coincidências impossíveis, dados que só alguém soturno e desesperado pode levar seriamente em consideração vão guiando esse romance sobre uma fuga.

Em “Uma Rua de Roma”, Modiano , assim como faz em seus outros livros, joga o personagem principal diante de um abismo que é o passado.

E o encontro que tem com a inquilina do antigo apartamento onde teria morado com a mulher é exemplo do labirinto noturno que aquelas memórias suas ou alheias lhe impuseram.

Cheia de reticências, ela pergunta se é McEvoy. E ele, sem qualquer certeza, confirma para depois ouvir da criatura: “O senhor não mudou muito”. O comentário é muito menos uma afirmação de reconhecimento do que uma espécie de concessão que a personagem faz diante daquela figura que se diz McEvoy.

A visão de André Wildmer num bar também não é menos fantasmagórica. Que amigo, reencontrando alguém que supunha ter morrido em mãos nazistas, viraria as costas para conversar amenidades com parceiros de copo, mesmo depois de ter trocado palavras de reconhecimento?

Agindo desse modo, Wildmer é uma pista tão falsa quanto a inquilina, a fotografia, o russo –ou Howard de Luz, a Rue de Rome, Bora Bora.

Nas últimas páginas, quando a narrativa começa a ser inundada pelo passado daquele judeu que foge da França ocupada na Segunda Guerra, antes de descobrir de fato o que vivenciou Guy, estamos, na verdade, diante do nascimento da memória e das múltiplas bifurcações possíveis nesse percurso.

O chão é movediço e arenoso. Acaba sendo de uma clareza paradoxal: a verdade que Modiano teceu ao longo do livro está em algum ponto obscuro, que nunca será atingido.

Não à toa o último capítulo soa como o retrato de um montanhista que, ao chegar ao topo visível do monte, percebe que aquela formação rochosa segue muito acima, às nuvens, sem que se consiga ver de fato seu cume.

MEU SENHOR, CONTIGO

Fiquei muito admirado com este livrinho lançado em 2005 por James Salter: “Last Night” –estou falando da seleção original e não do volume da Companhia das Letras– são dez contos que têm o cruel objetivo de desestabilizar.

Personagens muito importantes desaparecem sem grandes explicações, momentos capitais são menosprezados diante de situações menos dramáticas e banais, detalhes menores ganham dimensão impensada a princípio.

Em “Comet”, um sujeito se pega olhando as estrelas após discutir com a mulher durante um jantar entre amigos; nas linhas de “Eyes of the Stars”, uma produtora termina a noite em casa, solitária, depois que a atriz contratada para as filmagens decide ignorá-la e sair com seu parceiro de cena; já em “Give”, o marido aborda seu funcionário depois que a esposa lhe faz um insólito pedido.

Enfim, Salter, nascido em 1925 em Nova York, parece estar sempre querendo dizer outra coisa.

Personagens importantes desaparecem sem grandes explicações, momentos capitais são menosprezados diante de situações menos dramáticas e banais.

Mas, entre todas, a história mais cheia de intermitências literárias é “My Lord You”. O rendevouz na casa de Deems acaba mal com a chegada de seu amigo Brennan. Já embriagado, o escritor desperdiça todas as oportunidades de ficar calado.

Sugere que Ardis, uma das convidadas, é uma dona de casa sem cultura e fica irritadiço por ela não conseguir reconhecer um poema de Ezra Pound que ele cita de cor. Toca num seio dela e diz: “Eu tenho dinheiro. Quer que eu faça mais isso?”

Na volta, o marido de Ardis comenta sobre Pound: “Era um traidor. Fazia transmissões de rádio para o inimigo durante a guerra. Deviam ter atirado nele”. Ardis questiona: “Mas o que aconteceu?” “Ganhou um prêmio de poesia”.

Ela não consegue mais sair do ambiente opressivo daquele jantar nos dias seguinte. Vai até à biblioteca e encontra, de Pound, “The River-Merchant’s Wife”, que tem entre seus versos: “At fourteen I married My Lord you” –algo como “Aos quatorze, me casei, Meu Senhor, contigo”.

Aquelas linhas a fazem procurar os livros de poesia escritos por Brennan. Mas, devido ao temperamento arredio do autor, as obras não estão mais disponíveis, como Ardis se informa com a bibliotecária.

Então, depois de vasculhar a varanda de Brennan, ela passa a ser seguida diuturnamente pelo cachorro do escritor, que em alguns momentos parece uma estátua egípcia, imponente e assustadora. O bicho aprende onde ela mora. E perscruta o lar de Ardis até acordá-la na cama.

Os versos de Pound, a perseguição do cachorro, o sumiço (quase) permanente de Brennan e a obstinação de Ardis por uma personalidade que lhe causa repulsa interligam-se na superfície do enredo.

Os vestígios para vislumbrar o que tudo isso pode significar vão sendo lançadas aos poucos. Dois deles considero cruciais. O primeiro é um pensamento de Warren, marido de Ardis. “Uma coisa ele viu: como os homens podem estar perto do desastre não importa o quão seguro eles pareçam”, escreve.

O segundo é a passagem sorrateira da mulher à casa de Brennan para tentar alimentar o cão. Diante de um espelho, Ardis despe a blusa e fica com os peitos à mostra, os seios que foram alvo da verborragia e da indelicadeza na festa.

Ela é assediada por dois tipos de figura masculina: a do marido, que trabalha “dando conselhos” e “ajudando os outros”, e o escritor, arrogante, prepotente e ameaçador.

É este segundo homem, com suas possibilidades de violência, dor e paixão, que ela parece ver na figura do cachorro. Ao mesmo tempo, o cão a amedronta, mas a faz regressar. O desejo e o medo andam de mãos dadas.

Tenho, de certo, a diversão de Salter pela literatura, que é essa brincadeira infantil: o chiaroscuro coloca o leitor desarmado perante a imaginação e o sonho.

O que seria a subserviência do eu-lírico no poema poundiano senão a obediência do cachorro ao dono e o encantamento da mulher diante do escritor?

Mas a presença de Brennan num bar sem seu bicho, ao fim do conto, se torna a deixa para reolhar a narrativa, escrita em terceira pessoa, sob uma outra ótica: por não ter motivos racionais para agir, o cachorro, um dos seres mais importantes ali, torna a história o lugar do imponderável e do inapreensível, daquilo que está a “ponto de” –seja o desastre ou a salvação.

Penso, numa absoluta conjectura livre, no desaparecimento de Brennan como sua materialização fabulosa naquele animal. Mas não sei se teria muitos elementos que corroborassem essa argumentação.

Tenho, de certo, a diversão de Salter pela literatura, que é essa brincadeira infantil: o chiaroscuro coloca o leitor desarmado perante a imaginação e o sonho.

E as construções de Modiano e Fitzgerald produzem igualmente essa sensação de algo ainda a ser dito, não terminado, incompleto por essência, embora mergulhem no inteiro.

O melhor: mas não é assim a própria vida?

Alan Santiago

Alan Santiago é jornalista e escritor. Tem um livro de contos publicado e já foi repórter dos jornais O Povo e Folha de S.Paulo. Twitter: @alansantiago

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