Literatura

Vida sem medo

Eduardo Galeano

Eduardo Galeano (1940-2015) dedica muitas páginas de “As Veias Abertas da América Latina”, um de seus livros mais conhecidos, à história de Potosí, uma cidade boliviana que teve suas reservas de prata plenamente exauridas entre os séculos XV e XVIII, chegando aos anos 1970, época da publicação da obra, amargando uma pobreza franciscana. Alguns escritores bolivianos chegaram a dizer, em rasgos de grandiloquência, que a Espanha havia recebido prata suficiente para fazer uma ponte da Bolívia à Europa.

A ideia de uma ponte imensa, imemorial, esculpida em prata, perfazendo um caminho ao mesmo tempo cheio de poesia e dor. Essa é também a melhor descrição da obra de Galeano – seus livros, suas entrevistas, seu pensamento sobre o mundo.

A tragédia de Potosí sempre me impressionou exatamente por essa imagem: a ideia de uma ponte imensa, imemorial, toda esculpida em prata, perfazendo um caminho ao mesmo tempo cheio de poesia e dor. Acho que essa é também a melhor descrição da obra de Galeano – - seus livros, suas entrevistas, seu pensamento sobre o mundo.

Ele nos diz que a história constrói, à nossa revelia, uma ponte dolorosa e necessária em direção ao horizonte; entender em que ponto da caminhada estamos ou o que significa ser o que somos é crucial para seguir adiante. Isso transformaria a realidade num lugar de absoluta potência. Veja só: “Na verdade eu escrevo para celebrá-la [a realidade]. E, celebrando, denuncio tudo o que impede que a gente reconheça nos demais e em nós mesmos as múltiplas cores do arco-íris terrestre. Somos muitíssimo mais do que nos dizem que somos”, resumiu ao programa “Sangue Latino”, do Canal Brasil.

Embora tenha escrito muito sobre o passado e refletido sobre ele, Galeano tinha em mente sempre o futuro, esse lugar da utopia. Não à toa falava tanto dela. A utopia, que nunca será alcançada, serve para caminhar, relembra em várias entrevistas. Reiteradas vezes também, trazia à tona esse mundo – considerado impossível, improvável ou, pior, entendido como uma alegoria antiquada-, que está na interseção entre a história, a política e o sonho.

Numa manifestação juvenil na Catalunha, em maio de 2011, disse que o entusiasmo visto ali era a prova de que viver valia a pena. “E viver está muito mais além da mesquinharia da realidade política, onde se ganha ou se perde, e da realidade pessoal também – onde só se pode ganhar ou perder. Há um mundo que ‘pode ser’ nascendo no mundo que ‘é’.”

Também para a Catalunha, mas dessa vez ao programa “Singulares” do canal 3, pediu que o espectador se desse o direito ao delírio. “A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes. E nem por falecimento nem por fortuna um canalha se converterá num virtuoso cavalheiro”, leu, ao som do piano. “A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.”

Por isso, quando ele morreu, morreu também uma parte da esperança do mundo; minguou, para mim, pelo menos, isso que estou chamando de esperança, mas que talvez seja melhor dizer: sentimento do mundo – aquilo que é ao mesmo tempo uma visão total da complexidade da vida e também uma “racionalidade” antes de tudo sentimental e amorosa do universo. Galeano era esse sentimento.

Ele nos diz que a história constrói, à nossa revelia, uma ponte dolorosa e necessária em direção ao horizonte; entender em que ponto da caminhada estamos ou o que significa ser o que somos é crucial para seguir adiante. Isso transformaria a realidade num lugar de absoluta potência.

(Vale ponderar que essa característica estava muito mais associada à sua figura de pensador que ao trabalho como escritor do livro “Veias Abertas” –o que é legítimo. Houve indícios disso na Bienal do Livro, em Brasília, quando ele afirmou que “não seria capaz de ler de novo esse livro, cairia desmaiado”. “Para mim essa prosa de esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro”, divertiu-se. Embora o livro ainda seja uma aproximação válida a sua obra, o Galeano hoje não ficou parado no tempo e atualizou, como pôde, suas análises sobre a vida.)

Felizmente não restam agora somente os que se calam ou, o que é ainda uma tenebrosa realidade, os que “se dedicam a atormentar a humanidade” e que “vivem vidas enormes”. (“Não morrem nunca. Porque não têm uma glândula que, na verdade, é bem rara e que se chama consciência; é o que nos atormenta nas noites”, riu ao programa “Sangue Latino”).

Creio que existem também a nosso redor, e cada vez mais, aqueles que dizem “não”. Há um aprendizado poético e político na negação, como o personagem Bartleby que “preferiria não fazer”. E, de algum modo, a obra de Galeano compartilha com essas pessoas, desajustadas e incoerentes, a força do “não”, esse “não” à injustiça e ao desamor. De seus passeios por Montevidéu, do café que bebia no restaurante El Brasilero e que ganhou seu nome, das obras lançadas, das palestras e entrevistas, acho que ele deixa pra trás esse pequeno gesto grande de dizer “não” e, assim, poder acreditar num mundo onde seja possível viver sem medo.

Alan Santiago

Alan Santiago é jornalista e escritor. Tem um livro de contos publicado e já foi repórter dos jornais O Povo e Folha de S.Paulo. Twitter: @alansantiago

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