Viagem

São Paulo travessia

 

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Foto: Grazielle Albuquerque

Vim para São Paulo com os dias contados. Era chegar, cumprir uma missão e voltar para casa. Foi um movimento aos empurrões, um impulso em busca de uma meta a cumprir. Na agenda vermelha estavam a lista das disciplinas, a data-limite para a proficiência em francês e a urgência de escolher onde morar. Sim, um doutorado a cumprir.

E, quando se muda de cidade com algo muito definido para dar conta, corre-se o risco duplo de ser engolido pela tarefa imposta e pelos estereótipos que as pessoas costumam vender sobre os locais e as formas mais adequadas para realizar tal tarefa. É quase como tirar um daqueles cartões de instrução do Banco Imobiliário: “Se você quer ganhar o jogo, precisa comprar tantos lotes da mesma cor, colocar umas casinhas, aí poderá montar um hotel e vencer na vida”. Tudo dito, uma cartelinha de indicações para a felicidade.

Eis aí o primeiro desafio: ter lucidez para enxergar que desejo e necessidade não precisam entrar em uma “forma”. Fui, então, descobrindo outros caminhos. Nada estava no script, era tudo descoberta.

Eis aí o primeiro desafio: ter lucidez para enxergar que desejo e necessidade não precisam entrar em uma “forma”. Foi assim que, mesmo estudando em Campinas, descobri que poderia viver muito bem em São Paulo. Na primeira greve do transporte público na capital, ficou claro que foi acertada essa minha escolha inversa à máxima de que se deve “morar perto de onde se estuda e trabalha”. Fui, então, descobrindo outros caminhos. Assim, minha rotina consistia em ir à Unicamp no “Massa Crítica” – o fretado mais intelectual da paróquia, andar de bicicleta pela Faria Lima e desvendar parques como o Ibirapuera, subir a pé a Consolação e flanar pela Paulista com todos os sentidos atentos a essa espécie de artéria que atravessa um corpo. Nada estava no script, era tudo descoberta.

Além das ruas com grafites e lambe-lambes, uma das seduções de São Paulo é o apelo ao paladar. Descobri locais especiais de Pinheiros, como o Doce e Cia., com a melhor sopa não gourmetizada da região; o ovo molett do Le Jazz, que tem a capacidade de materializar a verdadeira felicidade pequeno-burguesa em uma garfada; o Fitzgerald do Boca de Ouro, com a sensação de que um drink serve mesmo para se comemorar algo, ainda que intimamente; o Cine Sala – cinema de rua da Fradique Coutinho –, que trabalha com uma escandalosa combinação para a “terceira idade” de filmes de arte, futons nas primeiras filas, pipoca sem sal e sorvete de chocolate vegano. Uma cidade que se mostra pelos serviços, pelos locais cheios de detalhes, pelo comércio dos bairros.

E se você sabe o que quer? Não seria um desperdício não aproveitar para fazer tudo diferente? Não. São Paulo me ensinou que, em essência, estranho seria tentar ser outra gostando tanto de quem sou.

Acontece que essa gama de possibilidades também é uma armadilha. Tudo e nada. Uma cartolina em branco para desenhar uma nova vida como lhe der na telha. Mas, e se você gosta é das mesmas coisas? E se, em grande parte da vida, fizesse as mesmas escolhas? E se você sabe o que quer? Não seria um desperdício não aproveitar para fazer tudo diferente? Não. São Paulo me ensinou que, em essência, estranho seria tentar ser outra gostando tanto de quem sou. Essa aceitação passa também por um modelo de cidade, pelas ruas que você escolhe, os caminhos que faz, as pessoas com quem fala. E, para mim, o espaço que ocupo sempre teve uma conotação afetiva. Gosto de saber o nome das pessoas que me atendem, onde encontrar a melhor iguaria, que rua tem as casas mais bonitas. É uma apropriação sem a qual meus vínculos não se estabelecem. Preciso pertencer ao local que ocupo, ainda que esse pertencimento seja uma passagem. É como contar uma história que pode terminar ao dobrar a esquina, mas até lá sua narrativa tem cheiro, cor e nome.

Foi dessas possibilidades que montei minha São Paulo. Algo que costumo chamar de meu pequeno roteiro afetivo. Desço a Artur de Azevedo e avisto o sebo do Josué com os livros que me esperam. Lá descobri o Brito Broca, ganhei um exemplar da Lygia Fagundes Telles autografado e fiz dois amigos. Um pouco à frente, no encontro com a Lisboa, está o café da Flavinha, onde revezo o ristretto na xícara de louça com o machiatto tirado fraquinho, como num mimo. Eis que, na esquina perto de casa, pude descobrir tantos matizes de algo tão atávico em mim como o gosto pelo café. Virando à esquerda, sigo em frente por uns três quarteirões, cruzo a praça Benedito Calixto e subo a ladeira rumo ao Goethe. Lá, bato papo com o Paulo, o bibliotecário, observo a senhora alemã com seus 90 anos que, no sofá pequeno, junta as pernas deixando à mostra seu all star rosa enquanto lê alguma revista e, finalmente, me acomodo em frente à janela do birô principal ou estudo lá fora, nas mesinhas do pátio, onde nos dias de inverno bate algum sol. Mais adiante, de volta à Artur, no fim da rua, vou à piscina da Atlética. Às vezes o encarregado se esquece de colocar a marcação com as boias e eu nado solta na raia do meio, como se cada braçada fosse uma conquista náutica. Das melhores sensações de liberdade.

A aventura foi a própria escolha tanto quanto o resultado dela. Pude reafirmar o que gosto, mudando o que não cabia mais em mim. Foi ainda uma época de corte, de saber quem são as pessoas que permanecem e aquelas que não têm mais lugar.

Esse pertencimento das coisas miúdas pode me mostrar que, como diz a Fernanda Meireles, “toda cidade é uma invenção”. E, se existem cidades no mundo que te permitem essa mágica, São Paulo é uma delas, porque é tão múltipla que cabe tudo em suas fronteiras. É possível viver a ferveção da Augusta, observar a nostalgia meio decrépita do centro, tirar uma foto clichê da Ipiranga com a São João, rasgar dinheiro nos shoppings ou na 25 de Março e ver os judeus em Higienópolis. Pode tudo, como na metáfora da Paulista aberta aos domingos: as bicicletas, as pessoas, os coxinhas, os casais gays se beijando, o Pato da Fiesp e os mendigos nas calçadas. E, tal qual o clima que comporta sol, chuva e frio no mesmo dia, também é possível viver tudo junto. Há contrastes em uma cidade que pode oprimir pelo excesso, mas abre a chave para o particular.

Por isso mesmo, nesse universo tão intenso e plural, a aventura foi a própria escolha tanto quanto o resultado dela. Pude reafirmar o que gosto, mudando o que não cabia mais em mim. Foi ainda uma época de corte, de saber quem são as pessoas que permanecem e aquelas que não têm mais lugar. Por outro lado, foi a vastidão do conhecimento, a definição de uma agenda de pesquisa para a vida. O encontro da academia com o jornalismo. O texto em ambas as dimensões. A escrita, da qual não abro mão. Ah, a escrita! A análise e o ativismo. Mais uma vez a sensação de que se pode fazer o que se quer de uma maneira que não obedeça a ditames ortodoxos. Uma espécie de sintonia fina. Uma travessia para dentro que te prepara para o mundo.

E, nessas inúmeras descobertas, curiosamente, talvez a coisa mais preciosa que São Paulo me mostrou foi uma nova dimensão de Fortaleza, tanto da cidade quanto do adjetivo. Uma certa força que advém da consciência de si. Pauliceia que se desvairou em sentidos e me fez perceber que o que havia construído na cidade onde nasci e cresci irei levar comigo aonde quer que eu vá. É estranha essa construção, mas não frágil. E como foi difícil perceber isso. Tão difícil quanto necessário.

Eis a minha São Paulo travessia: o mundo que me revelou a casa e que, ao seu jeito, me libertou dela. O primeiro passo de uma estrada muito longa.

 

Grazielle Albuquerque

Grazielle Albuquerque é jornalista, cientista política e arengueira. Criou a Pulga ainda na faculdade com um grupo de amigos. Hoje revive a meninice e a aventura da escrita. É viciada em história, política, café e música. Cultiva o bom humor e tem um quarto azul.

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Um comentário sobre “São Paulo travessia

  1. lindas linhas de quem se permitiu sair de suas páginas pautadas. a cidade é o que você permite que ela seja, não o oposto. viver a cidade, seja a megalópole, seja a aldeia, é aproveitar o tempo e os deslocamentos entre os ponteiros do relógio, entre os inadiáveis compromissos da lebre branca. viver a cidade é ser um pouco chapeleiro, um pouco alice, nunca rainha. viver a cidade é permitir-se cheiros, calores, tropeços, ruas erradas, encontrões e encontros. viver a cidade é sair pra cidade.

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