Viagem

Viajo porque preciso, volto apesar de não te amar

Stardust 6 - SP2

Como os demais textos aqui redigidos, este desponta num impulso, sem deliberação prévia. Espécie de jorro verbal quase catártico, pelo menos pra mim. Em certa medida, confesso, ele foi suscitado por uma viagem recente, cujos efeitos ainda reverberam cá nos meus neurônios, mas não me ocorrera, até o presente em que escrevo, desejo de rascunhar quaisquer apontamentos sobre isso. O caso em pauta, vamos a ele, é minha relação conflituosa com a capital paulista; uma gangorra que, por hora, hesita em ceder. É possível amar e recusar uma cidade? Que triste indagação…

Nos tempos de jornalista, costumava celebrar toda pauta que me direcionava a São Paulo; sentia um prazer imenso em percorrer suas ruas, em frequentar suas festas e roteiros culturais, em rever velhos amigos que migraram para o Sudeste por um ou outro motivo. Assim, pintou viagem para SP não redação do Diário do Nordeste (Fortaleza-CE), lá estava eu entre os candidatos mais afoitos: podia ser pré-estreia de filme, divulgação de CD ou lançamento de gibi, eu topava tudo, com igual ânimo e entusiasmo.

O caso em pauta, vamos a ele, é minha relação conflituosa com a capital paulista; uma gangorra que, por hora, hesita em ceder. É possível amar e recusar uma cidade? Que triste indagação…

Veio 2008 e com ele mudanças repentinas que intensificaram este afeto: deixo a redação e o jornalismo em definitivo, inicio no doutorado e estabeleço residência em Campinas-SP, cidade de personalidade curiosa. Embora maior que algumas capitais brasileiras, permanece provinciana em certos aspectos; uma cidade rica, em virtude do pólo industrial, mas de ares ainda interioranos. Neste período, a proximidade entre Campinas e São Paulo me levou a converter esta última em segunda moradia: praticamente todos os fins de semana, aportava no Terminal do Tietê para longa estadia na Paulicéia. No percurso, já folheava o encarte cultural dos jornais para definir meu roteiro. Naqueles tempos, dizia e insisto ainda hoje: dependendo de sua índole e dispo$ição, São Paulo é a melhor cidade deste País para um estudante de doutorado.

Mas, como eu disse, esta avaliação depende de muitos fatores: o dinheiro, aliás, está longe de ser o único relevante. O fato é: tal como São Paulo me arrebatara, gradualmente a mesma cidade me comunicava uma resistência, impaciência e aversão crescentes. Suas vias me pareciam sufocantes; seus moradores, entediados; sua dinâmica, incompatível com o que ambiciono para a minha vida. E, confissão das mais honestas, não importa a atração musical ou a publicidade em torno de uma exposição (menciono, por exemplo, aquela em homenagem a David Bowie, ídolo de longa data), nada conseguiu demover tal indisposição, cujo ápice se deu em fins de 2012 e que prossegue forte nesta quase virada de ano.

A polarização PT-PSDB encontra sua justa analogia em outra velha dualidade: São Paulo x Nordeste. É triste, mas a “mais nordestina” das cidades brasileiras parece não atentar para as contradições implícitas neste antagonismo.

Tenho dificuldades em verbalizar o que provocou tamanha rejeição. Não é vergonha, mas incapacidade de racionalizar plenamente e de atestar convicção. Teria sido a “vocação coxinha” de muitos de seus moradores? Fator que a coloca, juntamente com Curitiba-PR, dentre as cidades de posição política mais tacanha neste Brasil por hora atribulado… Sabemos que a polarização PT-PSDB, pelo menos nas redes sociais, encontra sua justa analogia em outra velha dualidade: São Paulo x Nordeste (do ponto de vista “coxinha”, Brasil sucesso x Brasil regresso). É triste, mas a “mais nordestina” das cidades brasileiras parece não atentar para as contradições implícitas neste antagonismo…

Seria o monocromatismo de suas ruas e edificações, uma paisagem urbana de contornos medonhos? Talvez, mas, pra ser franco, são poucas as capitais brasileiras, cujo traçado urbano nos provoca encanto. As vias congestionadas, quem sabe? O andar robótico dos milhões de usuários que transitam pelas estações de metrô, atentos a seus smartphones e ao horário do serviço? A atmosfera sempre poluída que me provoca sucessivas crises alérgicas? As filas intermináveis para qualquer restaurante ou serviço? Sua elite tagarela que protesta contra ciclovias e reclama da crise, ainda que mantenha reservas constantes em restaurantes top como D.O.M. ou Fasano?… Em seu segundo álbum, o paulista Criolo, filho de Nordestinos, compôs uma canção cujo título se tornou referência comum para ilustrar um aspecto negativo da cidade – Não existe amor em SP. Este bordão, hoje, se tornou clichê. Mas, curiosamente, ainda possui força e atesta um pouco da inviabilidade que sinto ao redigir este texto.

Mas, a partir desta última viagem, ficou evidente pra mim que cidade alguma pode te levar a desistir do convívio íntimo com as pessoas que você ama.

Enfim, depois de quase três anos de afastamento consciente, voltei, em fins de 2015, a pisar no aeroporto de Guarulhos. Evitei o quanto pude. Frio na barriga, inquietação, ansiedade se mesclavam a certo desejo de ver minhas aflições e receios negados, pelo menos parcialmente. Em uma semana de estadia, tive a companhia e a solidariedade de amigos queridos; gente disposta a contribuir para renovar minha fé nesta cidade. Alguns passeios, bons restaurantes, longas tardes de conversa produtiva, vínculos afetivos restabelecidos… De modo algum, posso me queixar da acolhida recebida. Mas São Paulo não desabrochou; no limite, manteve dormente minha desconfiança…

De qualquer modo, me prometi que haveria outros retornos e em períodos mais breves.  Nestas idas e vindas futuras, é possível que São Paulo, em seu cotidiano implacável, não consiga reverter o jogo e novamente me cativar; por outro lado, reconheço que talvez eu me encontre numa posição refratária, típica de quem se blindou contra o que lhe aflige. Mas, a partir desta última viagem, ficou evidente pra mim que cidade alguma pode te levar a desistir do convívio íntimo com as pessoas que você ama. Assim, São Paulo, não obstante minha rejeição, poderá ser sempre um destino gastronômico surpreendente, o lugar para reencontrar e abraçar velhos amigos, a cidade onde posso beijar meu afilhado e vê-lo crescer… Embora, é claro, preferisse ele por aqui, correndo pelas ruas do Recife, ao alcance de algumas quadras!

Laécio Ricardo

Laécio Ricardo é (ou foi) jornalista, é doutor em Multimeios pela Unicamp e professor da UFPE. Apaixonado por gatos, tem convicção de que é cearense, não obstante pistas contrárias, e adora o mar, apesar da epiderme albina.

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Um comentário sobre “Viajo porque preciso, volto apesar de não te amar

  1. Linda crônica, e tão verdadeira! Identifico-me completamente com estes sentimentos, às vezes tão contraditórios, em relação a esta cidade-zona que, mesmo após dez anos de convivência, invariavelmente, continua alimentando, todos os dias, meu sonho de ir embora.

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