O amor ao conhecimento deve ser maior do que o amor ao conforto
No capítulo final de “The Last Word”, uma defesa da racionalidade como ferramenta inescapável ao entendimento da vida, o filósofo norte-americano Thomas Nagel lança um questionamento no mínimo provocador: e se chegarmos à conclusão de que a evolução tem um propósito? Nagel esclarece o pensamento desta forma: “Se a ordem natural admite leis físicas fundamentais, universais e matematicamente belas como as que descobrimos, por que não poderia admitir leis e limites igualmente fundamentais (sobre os quais nada sabemos) que sejam consistentes com as leis da física e deixem claro o desenvolvimento de organismos conscientes – alguns deles tendo a capacidade de descobrir, por meio de um prolongado esforço coletivo, verdades fundamentais sobre aquela mesma ordem natural?”*
Essa ideia arrepia os cabelos de racionalistas e céticos, porque parece imbuída de uma perspectiva religiosa – ainda que o filósofo tenha tomado o cuidado de pô-la apenas em termos científicos. Algum tipo inescrutável de coerência na criação e em seu desenvolvimento é o que todas as religiões reclamam que seja a verdade desde o início dos tempos. Num mundo cuja ascensão conservadora e o obscurantismo religioso são uma realidade, tal descoberta enfraqueceria, de alguma forma, o papel da racionalidade e da ciência, concedendo a sacerdotes de todos os matizes uma proeminência, ou ao menos uma equivalência, em decisões até então confiadas aos laboratórios e ao método?
O medo do pensamento religioso e das proposições religiosas não deve fragilizar justamente o que pensa estar protegendo. A ciência não se beneficia quando recusa de antemão uma ideia por se apegar a uma visão de mundo cristalizada.
É verdade que, até que se realize, isso não deixará de ser uma possibilidade. Mas, nesse ínterim, o medo do pensamento religioso e das proposições religiosas não deve fragilizar justamente o que pensa estar protegendo. A ciência não se beneficia quando recusa de antemão uma ideia por se apegar a uma visão de mundo cristalizada. Isso, inclusive, é anticientífico. Aliás, nenhum ser que opere com a razão lucra ao negar o que não lhe é conhecido sem motivos suficientes para tanto. Como se percebe, não estou dizendo que devemos procurar as tábuas da arca de Noé. Mas, voltando ao terreno da realidade e não do mito literário, sempre acho um devaneio infantil o medo do “gene gay”.
Primeiro, é preciso pontuar que uma parte da crítica a esse tipo de pesquisa não é desprovida de mérito: nenhum geneticista procura o gene hetero do mesmo modo que nenhum médico investiga a saúde, porque ambos são considerados o grupo padrão; logo, a homossexualidade desafiaria a heteronormatividade assim como a doença afronta a saúde. Fica, então, claro o lugar e a posição subalterna ou elevada de cada sexualidade nesse jogo científico. Entretanto, é irracional o medo, propriamente de esquerda, de que a sexualidade seja genética em essência, e não construída socialmente.
Isso é compreensível, porque se trata de um medo análogo ao que a ciência tem da religião, ou seja, de que a concessão a uma ideia estrangeira potencialmente perigosa e conservadora debilite uma visão de mundo aberta e inclusiva. Por isso, novamente pergunta-se nas mesmas bases usadas antes: num mundo de wahabismo assassino e de neopentecostalismo charlatão, identificar um tal gene pode desencadear uma corrida eugenista do mesmo modo que se tenta extirpar a predisposição genética ao câncer? Bom, são os riscos que a verdade corre. Só a mentira é soberana e imutável porque facilmente adaptável às ocasiões; a verdade, ao contrário, é remédio amargo, sempre diferente, cuja única alternativa que nos resta é aprender a administrá-la. De qualquer forma, é sempre bom lembrar que os fascistas não precisam da ciência para vociferar ou praticar insanidades. Eles já fazem isso a despeito dela ou a distorcendo em seu favor.
De qualquer forma, é sempre bom lembrar que os fascistas não precisam da ciência para vociferar ou praticar insanidades. Eles já fazem isso a despeito dela ou a distorcendo em seu favor.
Então, digamos que se tenha finalmente batido o martelo sobre este dado da natureza, que haja trechos de um par de genes responsáveis por definir a sexualidade de um sujeito. Todas as pessoas que acreditam numa sexualidade construída e não genética devem rever seus conceitos. Eu serei um deles. O amor ao conhecimento tem de ser maior do que o amor ao conforto. Conhecimento é, antes de tudo, desprendimento. Os anticopernicanos da época de Galileu também possuíam bons motivos, naquele contexto medieval, para desconfiar do modelo heliocêntrico. Todas as observações apontavam o contrário. Era o Sol que se movia enquanto a Terra permanecia substancialmente parada; os planetas sumiam e reapareciam no horizonte observável como se estivessem girando a nosso redor; um livro confiável e milenar, a Bíblia, referendava essa opinião. Hoje se considera louco aquele que continua afirmando a mesma coisa – as redes sociais estão cheias deles, infelizmente. Tal como o Sol ganhou o posto de centro de nosso sistema planetário, o “gene gay”, ou melhor, para ser mais correto, o gene que determina nossa sexualidade obrigará a uma recondução de muitas das pesquisas de gênero. Isso não seria ruim. Nem bom. Apesar de nós, a Terra continuará girando em torno do Sol.
* NAGEL, Thomas. The Last Word. Nova York: Oxford University Press, 1997. (pp. 131-132. Tradução minha).
Alan Santiago
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