É das sutilezas e das certezas íntimas que são feitos os melhores dias de nossas vidas. E há aqueles em que se já não bastasse essa constatação, você ainda recebe um email carinhoso de uma professora que te acompanha desde o primeiro livro de teoria política. Lá no final da gradução, no tempo das imensas expectativas, da gaveta com sonhos. Mas, tendo à parte as questões próprias de cada um, o que me resta na reflexão de hoje é algo sobre construção, persistência, tempo e – por que não dizer – reencontro consigo.
Quando a vida pesa, eu costumo brincar dizendo que não tem “pagadinha do Gugu” que dure dez anos. É uma forma de dizer que tudo passa, que a vida se reorganiza e as coisas mudam ainda que você fique inerte. Aí é que está. O tempo e o movimento da vida sempre mudam as circunstâncias ao nosso redor e isso, em si, transforma nossa condição, mesmo quando permanecemos parados. É um alento para quando não se tem muita gana de mexer as peças do tabuleiro. Nisso, muitas coisas morrem. Contudo, é bonito quando, mesmo antes da vida mudar de rota, nós mesmos vamos alterando a direção, damos alguma chance ao que ainda pode viver.
Tudo passa e as condições se transformam. Contudo, é bonito quando, mesmo antes da vida mudar de rota, nós mesmos vamos alterando a direção, damos alguma chance ao que ainda pode viver.
Essa mesma professora a qual me referi sempre foi das pessoas mais luminares que conheci. Sempre atenciosa, mas sempre com pressa. A penúltima vez que a encontrei foi num café em Berlim, em 2013. Lá estava ela me ajudando com o projeto do doutorado. Uma caderneta, mil anotações e uma bicicleta lá fora. A vida veio num turbilhão e enquanto eu entrava do doutorado soube que ela estava em algum país do oriente, depois soube do seu câncer e por fim a reencontrei ano passado. Ela estava linda, com uma echarpe de seda nos ombros e o cabelo curtinho pintado de azul. A mesma acuidade, mas parecia outra pessoa. Algo tinha morrido e algo renascido, como nas metáforas próprias das doenças. Tinha pressa, mas tinha centramento e vida.
Quando ela estava se recuperando lembro de ter lhe enviado um livro da Rosa Montero – que adoro – chamado “A Louca da Casa”. É um livro sobre as narrativas que criamos para nós. Literalmente, a vida que inventamos. Era isso que eu queria dizer a ela. Que se podia inventar algo novo, mantendo o que ainda fazia sentido. Dizia para ela como quem repetia para mim: ” – Sim, é possível”! E a gente tem que repetir sempre porque a gente esquece. Não tem uma semana, uma amiga repetia para mim a importância dessa vida inventada que a gente cria.
Era isso que eu queria dizer a ela. Que se podia inventar algo novo, mantendo o que ainda fazia sentido. Sim, é possível! E a gente tem que repetir sempre porque a gente esquece.
De tantas transformações, é bom perceber que não sou mais a menina de 20 anos mandando um email para uma professora desconhecida, é bom saber que do outro lado tem alguém que acompanhou minha trajetória. Mas, melhor mesmo é saber que ainda que lidando com o mesmo tema, com os mesmos sonhos, a trilha percorrida é outra porque nós também mudamos. Contudo, algo ainda faz sentido. O tempo destrói um monte de coisa e certamente é bom que isso aconteça. Tenho aprendido a deixar ir o que perdeu espaço na mesma intensidade que celebro o que mudou de roupa para caber melhor. E não há como negar que ver as coisas funcionando praticamente 15 anos depois é emocionante.
Nos dizeres da Rosa Montero, talvez seja porque nossa “vida inventada” tenha amadurecido, mas permaneça com o desejo de existir. Não precisa de situações drásticas para a gente se perder de si. A gente pode se perder no dia a dia. Por isso, é tão lindo quando ainda é possível se encontrar. Quando o que foi ainda pode ser, mesmo que para isso tenhamos que nos despedir de outras tantas coisas.
Texto publicado originalmente em 30 de maio de 2017.
Grazielle Albuquerque
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