Crônica

A epifania do algodão doce

algodão doce

Ontem eu vivi uma cena tão bonita e forte que me lembrou outra vivida há anos, quando eu ainda fazia faculdade e peguei uma rota de ônibus chamada Demócrito Rocha, que nem sei se existe mais. Ela passava por dentro do meu bairro. Sempre pegava esse trajeto quando tinha tempo e queria ir vendo as ruas de dentro, longe da avenida, e ter alguma emoção com o motorista que dirigia nas ladeiras como se elas fossem um tobogã.

É sobre as madeleines de Prost, é um gosto que lembra a infância. Não é lembrar das coisas em si, mas do gosto delas, o que em você elas mobilizam. Isso de alguma forma é libertador porque o que permanece é a sensação e não o desejo de voltar no tempo.

O ônibus sempre ía vazio a noite e num desses passeios solitários eu avistei pela janela um carrinho com algodão doce. Foi a última vez na vida que vi um  carrinho daqueles. Uma espécie de carrocinha com a máquina acoplada, nada de palitinho e nem anilina. Era açúcar de pobre, sem refino (hoje conhecido como demerara) que ganhava forma de algodão doce apenas preso por uma ponta de papel, desses também rústicos, que antigamente enrolavam pão. Esse tipo de algodão, com esses vendedores foram entrando em extinção ao longo da minha adolescência. Já havia anos que eu não avistava um e, nesse dia, quando pela janela vi passar a tal carrocinha, dei sinal e desci ainda bem longe da minha casa. Catei todas as moedas que tinha e comprei o algodão doce maior que pude, como que na certeza de que nunca mais tivesse outra oportunidade de sentir aquela sensação.

Era quase cômica a cena. Um algodão gigantesco derretendo com o vento, grudando no meu rosto e cabelo.  Enquanto isso, eu andando uns 15 quarteirões a pé tentando tanto comê-lo, para evitar que derretesse, quanto ao mesmo tempo desejando que demorasse o máximo possível, querendo prolongar aquela sensação, tê-la guardada em algum lugar. Isso já tem pra lá de uma década e guardo até hoje essa sensação numa espécie de bolso íntimo, ainda que o gosto daquilo tenha durado, sei lá, cinco minutos.

É algo sobre as madeleines de Prost, é um gosto que lembra a infância, a casa da minha avó, a vitrolinha antiga…. A gente não pode reviver certas coisas, fato. Mas certas sensações se desprendem da realidade e remontam mesmo a um estado de espírito. Não é lembrar as coisas em si, mas do gosto delas, o que em você elas mobilizam. Isso de alguma forma é libertador porque o que permanece é a sensação e não o desejo de voltar no tempo. É como terminar uma jornada e de certa forma poder descansar, sentir a grama sob os pés, o choro incontido. Porque o que se retoma, ainda que momentaneamente, é algo vivo.  Mesmo que escondido, o que emerge é um potente sentimento sobre si.

Texto publicado originalmente em 13 de setembro de 2017.

Grazielle Albuquerque

Grazielle Albuquerque é jornalista, cientista política e arengueira. Criou a Pulga ainda na faculdade com um grupo de amigos. Hoje revive a meninice e a aventura da escrita. É viciada em história, política, café e música. Cultiva o bom humor e tem um quarto azul.

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