Literatura

Pode grifar

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As grandes editoras se recusaram a aderir ao “Netflix dos livros” da Amazon; os autores autopublicados estão indignados por causa dele; o serviço muda o modelo de negócio editorial. E a vantagem para o leitor? Poder usar –leia-se riscar– todos os livros da biblioteca.

Um serviço lançado dia 18 de julho pela Amazon tem jogado incertezas no mercado mundial do livro e dividido leitores nos EUA.

O Kindle Unlimited é uma biblioteca digital: por R$ 9,99 ao mês –cerca de R$ 22, valor que no Brasil (quase) não compra um romance mirrado–, o usuário tem acesso ilimitado em seu e-reader, tablet ou celular a mais de 600 mil títulos. Por enquanto está disponível apenas nos EUA, sem previsão de chegada no Brasil.

Não há prazo para devolução do exemplar, pode grifar como se o livro fosse seu, baixar um gigantesco acervo de audiolivros e manter até dez e-books de uma só vez. Não à toa ganhou a alcunha de Netflix dos livros.

No Mobileread, um fórum dedicado à discussão de e-books, as opiniões se dividem entre os que mal deixaram o relógio cruzar 24 horas para assinar e os que estão absolutamente reticentes.

Exemplo da primeira espécie: o escritor inglês Dave Robinson, que aderiu pelas séries de ficção científica e a chance de descobrir coisas novas. Amostra do segundo gênero: Joy L., uma engenheira norte-americana, que está pouco disposta a ceder à Amazon.

Segundo ela, aderir a uma biblioteca digital só vale a pena para aqueles que leem mais de três livros por mês –o que até é o caso dela, que me disse já ter batido a suspeitíssima marca de 500 volumes num ano.

“Mas, se o serviço será realmente bom para o leitor, depende da seleção de títulos. E acho que o Kindle Unlimited ainda não alcançou seus competidores na área”, acrescentou.

A Amazon compete não apenas com bibliotecas locais que começaram a emprestar e-books, mas também com empresas que utilizam modelo análogo de negócio.

Essa frase ecoa um pouco a percepção geral da turma do fórum, um bom termômetro para a recepção geral da novidade. A biblioteca que frequentam, afirmam muitos, disponibiliza melhores livros do que o catálogo acessível por meio do Unlimited.

Essa é a grande questão para a Amazon nesse momento. Ela compete não apenas com bibliotecas locais que começaram a emprestar e-books, mas também com empresas que utilizam modelo análogo de negócio.

A Oyster, fundada em setembro de 2013, e o Scribd, –aquele que você baixava de graça PDF pirata– convertido em biblioteca digital paga em outubro daquele ano, rivalizam nesse nicho atualmente com a gigante.

O Scribd, por exemplo, cobra US$ 8,99 mensais e oferta 400 mil títulos de mais de 900 editoras. Na Oyster, por um acesso ilimitado a 500 mil livros, o leitor paga US$ 9,95 mensais.

“A entrada da Amazon no jogo não muda o que viemos fazendo no último ano e só reforça que estamos construindo algo grande”, afirma a porta-voz do Scribd, a americana Lyndsey Besser, numa entrevista que fiz com ela para a Folha de S.Paulo do dia 26 de julho.

Procurei a Oyster também para saber o que a empresa achava de um novo player num mercado que antes era praticamente só dela. A assessoria de imprensa até ensaiou atender a meu pedido de entrevista, mas não se pronunciou mais depois de uns dias –e as edições fecham, as pessoas morrem, o jornal embala peixe etc.

Mas que vantagem teriam  sobre a maior livraria do mundo as “modestas” Oyster e Scribd, que têm menos livros no catálogo e cobram quase o mesmo preço?

Fizeram parceria com algumas das principais  editoras americanas. A Amazon, não.  Mesmo quem assina o Unlimited e quiser ler livros da Nobel americana Toni Morrison ou do angloindiano Salman Rushdie, ambos publicados pela Penguin, terá de pagar por eles.

Stephen King, da Hachette, é outro que está fora. A Hachette, por  sinal, discute ardorosamente na justiça com a Amazon sobre os preços de seus livros vendidos lá. Está acusando a varejista inclusive de atrasar entregas de propósito. Há algo de podre no  reino da Dinamarca.

Simon & Schuster, HarperCollins e Macmillan, completando as cinco grandes, decidiram também não disponibilizar seu acervo. (Pelo menos, por enquanto, amigos.)

A Amazon é só silêncios sobre muitas coisas e, previsibilíssima, não dá detalhes dessa negociação infrutífera.

De qualquer forma, o interesse da varejista por serviço de assinatura eletrônica de e-books  grita os próximos passos da indústria.

E, do mesmo jeito que uma onda de angústia caiu sobre a cabeça dos editores quando os livros digitais começaram a crescer numa popularidade vertiginosa, a mínima possibilidade de que o Unlimited se torne a regra num futuro próximo já tem feito as casas editoriais franzirem o cenho de desconfiança.

A principal mudança é na remuneração a editoras e autores. Eles deixam de receber por venda e passam a ganhar apenas por livros lidos.

“É muito cedo para saber o que vai acontecer. Isso muda completamente o modelo de negócio. Os próprios editores não sabem qual vai ser a consequência disso nas vendas”, afirma o analista Carlo Carrenho, fundador do Publishnews.

A principal mudança é na remuneração a editoras e autores. Eles deixam de receber por venda e passam a ganhar apenas por livros lidos.

Esse quantum de leitura exigido para que a cadeia produtiva seja de fato remunerada não é fixo. Besser, do Scribd, me disse que e-books de culinária ou de viagem não compartilham da mesma cota mínima dos romances.

No caso da Amazon, pelo menos 10% da edição  deve ser consumida para que os escritores autopublicados tenham retorno.

Por isso a discórdia está disseminada entre eles. O americano Mark Coker, fundador da Smashwords, a maior distribuidora de e-books autopublicados para lojas virtuais nos EUA, tem uma avaliação mais precisa do cenário.

Segundo ele, a forma de pagamento “imprevisível” da Amazon está em franco contraste com o que praticam Oyster e Scribd.

Os autores da Smashwords que estão nessas duas livrarias recebem 60% do preço de capa do livro quando o usuário avança além do exigido. “E esse preço é estipulado por nossos autores”, destaca.

Já na Amazon os escritores autopublicados são pagos por meio de um fundo global, criado especificamente para esse fim, e que tem a desvantagem de variar com a receita.

A porcentagem que cada autor vai ganhar depende do montante  total do fundo naquele período. Atualmente está em cerca de R$ 2 milhões, mas pode ser menos, depende da vontade de Jeff Bezos.

As editoras de grande porte e os autores bestseller têm a benesse de receber  seus royalties em cima do preço de capa. “Esse tratamento preferencial enfureceu muitos escritores na comunidade de independentes que publicam pela plataforma Kindle Direct Publishing, da Amazon, porque eles acabam recebendo menos”, pontua Coker.

Além disso, os dispostos a participar  do Unlimited têm que publicar apenas pela Amazon. Nada de deixar o mesmo romance disponível para os usuários da Oyster.

Num vídeo de 11 minutos, o editor independente Nate Haselton explica o desastre iminente: “Ontem, dia 18 de julho, assim que eles lançaram [o Kindle Unlimited], meus livros emprestados ultrapassaram as unidades vendidas. Isso significa que eu não faço a menor ideia de quanto eu vou ganhar por cada um deles”.

Mesmo assim, a Amazon se tornou um ator grande demais para ser ignorado, por isso muitos  preferem acompanhá-la do que trilhar um difícil caminho solitário. É o caso da Real. Cool. Media., uma pequena casa editorial com sede na Alemanha que tem seu catálogo no Unlimited.

“A gente espera que com o crescimento de inscritos no serviço o capital do fundo se adapte a isso. Mas acreditamos que mudança é sempre uma oportunidade positiva. Estamos ansiosos pelo futuro”, aposta o presidente da Real, o alemão Eliott Reich.

A suspeição das grandes editoras acontecerá também por aqui caso a gigante americana decida trazer o Kindle Unlimited para o Brasil?

Com seis romances de ficção científica no currículo, o professor Paul Levinson considera a novidade um “grande benefício” para os menos famosos, “porque vai encorajar novos leitores a tentarem seu livro”.

A suspeição das grandes editoras acontecerá também por aqui caso a gigante americana decida trazer o Kindle Unlimited para o Brasil? A presidente do Sindicato de Editores, Sônia Jardim, tenta ser cuidadosa. “Precisamos ver se esse modelo é adequado para o mercado brasileiro”, diz.

As bibliotecas digitais  também têm ganhado terreno no país. A Nuvem de Livros, nascida há quase três anos, tem mais de 12 mil títulos e dá também acesso a conteúdos multimídia educacionais –como teleaulas e jogos.

O acervo tem curadoria de três profissionais (que estão ali para renegar seu livro se for muito ruim, sorry) e guarda e-books de editoras como Moderna, Autêntica e Melhoramentos. Quem tem chip da Vivo paga R$ 3,49 por semana.

“Vejo o Kindle Unlimited como um movimento de ocupação de um espaço comercial que havia sido ignorado pela Amazon a princípio. Caso essa estrutura se afirme aqui no Brasil, vai ser uma disputa acirrada, mas não nos preocupa minimamente”, me disse por telefone o presidente da Nuvem, Roberto Bahiense.

Outra iniciativa, lançada em abril, é a Árvore de Livros. Com 14 mil livros para empréstimo, aceita apenas assinaturas de empresas, bibliotecas e escolas. Por mês, a empresa que contratou o serviço paga até R$ 5 por usuário.

Árvore e Nuvem optaram por uma estratégia bem à brasileira, longe do espírito de agressividade capitalista americano. Eles não reduziram a remuneração à leitura.

A Nuvem paga autores e editores um valor mensal, embora os conteúdos mais acessados acabem levando um toquinho a mais.

Já a Árvore tenta consagrar um esquema análogo ao do livro físico: se duas pessoas quiserem o mesmo título ao mesmo tempo, eles compram da editora dois exemplares. Quando um deles for alugado cem vezes, mais um valor é depositado na conta da casa.

O presidente da Árvore, Galeno Amorim, é otimista. Ex-gestor da Fundação Biblioteca Nacional, ele analisa que a entrada da Amazon nesse matagal inexplorado ajuda a consolidar o conceito de empréstimo de e-book.

Pondera também que a expansão dessa ideia vai ser um fator de democracia educacional. “Você chega a uma quantidade de lugares onde as pessoas não têm acesso a bibliotecas físicas.” Que assim seja.

OBS: O texto da Pulga é um desdobramento da matéria escrita por Alan Santiago para a Folha de São Paulo.

Alan Santiago

Alan Santiago é jornalista e escritor. Tem um livro de contos publicado e já foi repórter dos jornais O Povo e Folha de S.Paulo. Twitter: @alansantiago

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