Como a prisão de 14 pessoas na França do século 18 pode ajudar a explicar o sentido dos comentários nas redes sociais
A investigação da polícia parisiense na primavera de 1749 redundou, como já era de se prever, no mais amplo nada.
Ninguém sabia quem afinal havia escrito os versos que começavam desancando o rei Luis 15 assim: “Monstre dont la noire furie”*. Ou em português: “Monstro cuja fúria negra”.
Todos os que foram presos –do estudante de medicina François Bonis até o estudante de filosofia Vermont, que tentou em vão se esconder– só conseguiam indicar alguém que, assim como eles, era um mero distribuidor da poesia. Melhor seria das poesias, no plural.
Catorze chegaram a ser trancafiados nas insalubres masmorras mantidas pelo Ancien Régime, e o episódio ficou conhecido como L’Affair des Quatorze.
Poderia ser apenas uma situação esdrúxula para os olhos contemporâneos, uma espécie de curiosidade histórica, não fosse pelo conciso, simples e profundo livro de Robert Darnton ter dado ao fato a análise que ele merece.
“Poesia e polícia –redes de comunicação na Paris do século XVIII” (Companhia das Letras, 228 páginas) questiona se a obsessão de Luis 15 por investigar o que pensavam os parisienses sobre ele e sobre o seu reinado não era já ali a ebulição do que seria a consagrada opinião pública.
A poesia era o veículo de todos os estratos sociais. (…) Tudo clandestino e anônimo. E obra anônima, oficina do Diabo. Graças a Deus.
Se já não pode ser qualificado com esse termo, pelo menos não se pode negar que havia uma rede de comunicação eficiente que dava conta dos problemas atravessados por eles.
Nada escapava: os ministros, as amantes do rei (Madame Pompadour era odiada), os tratados de paz (o de Aix-la-Chapelle, considerado indigno), as batalhas (como a de Lawfeldt, vencida por WO, quando os ingleses retiraram as tropas). E também os temas prosaicos da arraia-miúda.
A poesia era o veículo de todos os estratos sociais. Os mais pobres cantavam junto com os cantores de rua que se apresentavam nas feiras e praças; a classe média e os cortesãos lidavam com os textos em pedaços de papel que iam passando de mão em mão.
Tudo clandestino e anônimo. E obra anônima, oficina do Diabo. Graças a Deus.
Por isso ia-se construindo tão forte e tão disseminado o pensamento sobre a vida, porque cada um podia acrescentar, modificar, rimar e falar sobre o mundo, criando uma teia ampla e profundamente complexa sobre o sentimento de uma época.
Não é à toa que isso fosse considerado um perigo lá e seja considerado ameaçador também hoje. De alguma forma, vivemos no livro de Darnton –que me soa, em certo sentido, como uma realidade espelhada num vidro fosco.
Ainda somos levados à Bastilha por delitos de opinião e voltamos a frequentar o anonimato que já estava com cheiro de mofo.
Nós, os contemporâneos, amantes carnais da internet, elevamos à máxima potência a capacidade de gerar uma rede de comunicação que nos exponha a todos diante da esfera pública.
Particularmente acredito que, por um detalhe “insignificante”, estamos em melhor posição que os franceses comandados-mas-nem-tanto por Luis 15: enquanto ali os poemas tendiam para a formação de um consenso público sobre as peripécias aristocráticas, por exemplo, aqui vamos construindo nosso universo baseado no dissenso político e social.
Não que a opinião pública tenha se evaporado hoje ou até se estilhaçado. A imprensa escrita e a mídia televisiva continuam tendo esse papel unificador, embora num grau muito menor que antes.
Mas já não aceitamos mais que mesmo coisas simplórias da vida sejam contadas sem senões, apostos ponderativos e discussões acaloradas.
Isso não é uma crítica aos homens de hoje, nem uma simplificação das várias forças argumentativas daquela França.
Primeiro, porque sociedade alguma pode anular o que, em verdade, é o viver em grupo: o não, o confronto e a diferença. Depois, porque a internet livre, anônima, gratuita nos concede a chance de exercer isso em plenitude.
Estou dizendo que o cenário é apenas este: em tempo algum da história houve tantas situações frontal e publicamente opostas discutidas de modo massivo.
Primeiro, porque sociedade alguma pode anular o que, em verdade, é o viver em grupo: o não, o confronto e a diferença. Depois, porque a internet livre, anônima, gratuita nos concede a chance de exercer isso em plenitude.
Se os poemas de 1748-49 tinham limitações físicas, os comentários de Facebook e os 140 caracteres do Twitter são infinitos e não menos explosivos. Talvez só sem rima.
Nos tempos em que se vive, o Facebook é a poesia onde se canta mal ao rei e à amante dele, onde se questionam as decisões governamentais, se discutem dos temas mais tolos às questões filosóficas mais sérias e onde as diferenças estão vigorosamente pulsantes.
No Caso dos Quatorze, Darnton faz questão de destacar que o conjunto de poemas nada tem de revolucionário. É, antes, um coro de descontentamento com as estruturas de poder do período.
A questão lançada a nós é precisamente a mesma: será que, ao contrário, as poesias do século 21 estão nos levando para um movimento revolucionário? Eu me pergunto que Bastilhas morais, filosóficas, políticas poderiam –e podem– eventualmente cair com nossos tweets e nossos compartilhamentos.
*Eis o link para quem quiser ouvir as poesias cantadas por Hélène Delavault.
Alan Santiago
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